CONTRASTES
De vez em quando, lá decido dar um salto à Europa. Uma Europa a que dizem pertencermos, mas que basta passarmos a fronteira para sabermos quanto de anedótico há nessa afirmação. Só pertencemos à Europa nos papéis. Incluindo os mapas. Porque, no resto, estamos bem aviados. Onde os europeus são organizados, nós somos trapalhões. Onde eles são limpos, nós vivemos no meio da sujidade. Onde eles são trabalhadores, nós passamos a vida em protestos. Onde eles fazem tudo certinho, nós construímos trapalhadas. Onde eles tomam a vida a sério, nós passamos o tempo a reinar. Acho que é isso. Nós não tomamos a vida a sério. Esperamos sempre que um milagre qualquer nos resolva os problemas. E como os milagres são raros, vamos continuando a viver afogados em problemas. Basta respirar por alguns dias os ares da Europa que está aí ao nosso lado para chegarmos à conclusão de que nem daqui por um século estaremos sequer perto dela. Corremos mesmo o risco de estar cada vez mais longe.
Desta vez fui até Copenhaga, no reino da Dinamarca. Foi a segunda vez que escolhi esta cidade. Desta vez, como um incentivo maior. O de lá estar a trabalhar, para uma multinacional, um sobrinho meu de 26 anos. Licenciado ainda não há muito tempo. Um rapaz que nem parece português. Aplicado ao trabalho desde muito tenra idade. E que, seguramente por isso, deu nas vistas aos responsáveis maiores da empresa, depois de um curto período de onze meses na filial portuguesa da multinacional com sede na Dinamarca. Para vermos de que modo o trabalho pode compensar, basta dizer que, com aquela idade e ao fim de menos de três anos no mercado do trabalho, o rapaz tem condições de trabalho superiores àquelas de que dispõe, por exemplo, um juiz em Portugal.
Achei a cidade mais ou menos na mesma, relativamente ao momento em que a conheci, há cerca de vinte anos. A mesma beleza, a mesma limpeza, o mesmo movimento, a mesma alegria, a mesma responsabilidade. Copenhaga é uma das capitais mais seguras que conheço. E, todavia, quase não se vê um polícia. O trânsito flue, a cidade funciona. São raros os acidentes de trânsito, numa cidade onde os automóveis nitidamente cedem a prioridade às bicicletas. Tudo se faz com ordem. Os peões atravessam as ruas nos locais próprios e quando o sinal está aberto para eles. Ninguém atropela ninguém. Ninguém se considera mais esperto do que o próximo. Ninguém barafusta com ninguém. Toda a gente sabe quando tem direito a alguma coisa e todos respeitam o direito dos outros. É palpável o gosto que os dinamarqueses têm pelo estilo da sua vida social. Já há vinte anos tinha gostado imenso deles. O meu apreço aumentou desta vez. Porque vinte anos é muito tempo na vida de uma cidade, de um povo, deste ponto de vista. Porque nestes vinte anos, os valores sociais se degradaram extremamente por toda a parte. E, todavia, os dinamarqueses souberam guardar as características que fazem da vida em comum, da vida de uma comunidade, um prazer e uma alegria.
Regressei, ao fim de uma semana, porque o dinheiro dos portugueses é curto e porque a vida, na Dinamarca é muito cara para a bolsa portuguesa. Porque não é assim tão cara para os dinamarqueses. Como é que pode ser cara a vida num país onde o salário mínimo anda à roda dos trezentos contos por mês? Talvez seja isso um dos factores que lhes molda o carácter alegre. Isso e o rigor com que encaram a vida. Um rigor que duas pequenas histórias por mim vividas ilustram bem. Mas que, porque a crónica já vai longa, prometo contar na semana que vem.
Magalhães Pinto, em MATOSINHOS HOJE, em 9/7/2003
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