O MAL DO VIZINHO
O semanário SOL trazia, na sua última edição, um documento de autoria de Filipe Pinhal, antigo administrador do Banco Comercial Português (BCP), parceiro estreito do também antigo presidente Jorge Jardim Gonçalves. Tal documento, segundo o semanário, constitui parte da defesa do citado administrador Pinhal e, nessa qualidade, junto ao processo que corre nos tribunais portugueses, onde Pinhal e Jardim, juntamente com outros administradores são presumíveis delinquentes de vários crimes. É um documento que vale o que vale – apenas mais um para apreciação da eventual culpa. E nessa qualidade o apreciei.
Ao ler a história contada por Filipe Pinhal, recordei todo o processo do assalto ao Banco Português do Atlântico, acontecido já lá vão quinze anos, e ao qual estive estreitamente ligado, na qualidade de defensor contra a OPA levada a cabo pelo BCP. Contei a história pormenorizadamente em 1996, no meu livro A OPA, edição da Vida Económica. E não pude deixar de sorrir ao ver tantos paralelismos, entre os dois casos de que Filipe Pinhal foi actor, então como assaltante, agora como assaltado. E ao pensamento veio-me a o popular ditado que diz “não faças mal ao teu vizinho, que mal te não venha pelo caminho”.
Em primeiro lugar, esclareça-se desde já algo que pode ficar errado no pensamento das pessoas, ao lerem o semanário. Com efeito, lê-se ali:
“Nos dois primeiros actos, Pinhal conta como Jardim Gonçalves conseguiu impedir o sucesso de outras tentativas de assalto, nos anos 80 e 90, lideradas pelo empresário Américo Amorim e pela construtora MMS&F”.
Esta afirmação, a ser verdadeira, mostra bem a natureza da equipa de Jardim Gonçalves e da sua equipa. Como é que se pode considerar ASSALTO a vontade do então principal accionista do BCP e seu fundador, Américo Amorim, de exercer os seus direitos em assembleia-geral? Tal distorcida ideia só pode advir de quem, tendo sido contratado para gerir um banco fundado por outros, bem cedo confundiu o seu papel com o de dono do banco e procurou afastar o principal accionista das deliberações que estatutariamente a este pertenciam. Conto, naquele livro de minha autoria, como tal se processou. O capital do Banco estava muito fragmentado e a administração do banco desenvolveu esforços inauditos para obter a representação dos pequenos accionistas, que obteve em número muito significativo. Com isso, apoderou-se de votos para fazer frente a Américo Amorim, havendo todavia suspeitas de que terá havido uma manobra prévia, na qual Jardim Gonçalves terá convencido o empresário nortenho de que possuía número superior de votos, podendo isso não ser inteiramente verdade. Por mim, não vejo que a acção de Américo Amorim possa ser qualificada de assalto, o que, a ser, seria àquilo que era seu em maior medida. Não sei se, por detrás da argumentação de Filipe Pinhal estará uma ideia qualquer associada à defesa dos interesses dos pequenos accionistas. Mas, a estar, seria de uma hipocrisia confrangedora, bastando recordarmo-nos do processo de aumento de capital levado a cabo pela administração Jardim Gonçalves/Filipe pinhal & Ca., que deixoutantos pequenos accionistas em situação aflitiva para termos a certeza de que o interesse dos pequenos accionistas valia tanto para eles como um tostão furado. Se fôssemos tão radicais na utilização da linguagem como Filipe Pinhal, poderíamos afirmar que assalto ao BCP, por aqueles anos, foi perpetrado pela equipa administrativa de que ele foi parte. Basta vermos que, durante mais de uma década, ela se comportou como autêntica dona do banco.
O meu sorriso de ironia tornou-se mais aberto quando Filipe Pinhal acusou os poderes públicos de “conivência”, senão mesmo de autoria, do “assalto” ao BCP que vitimou os antigos órgãos sociais de administração. Uma vez mais, o ex-administrador tem fraca memória. E esquece deliberadamente que o assalto ao BPA só pôde ter sucesso porque a equipa governativa de então, liderada por Eduardo Catroga, foi dele cúmplice. Ao ponto de, tanto ao nível das autoridades de supervisão dos bancos e dos seguros como do próprio ministério, toda a gente ter fechado os olhos ao facto de que o ainda pequeno BCP, em conjunto com a companhia de seguros do Banco Melo, não tinham capacidade financeira legal para adquirirem o BPA. E só essa cumplicidade permitiu que o BCP tivesse sucesso no referido assalto, embora às custas de deixar o BCP sob risco de falência.
O que pode legitimamente argumentar-se é que as autoridades financeiras, agora acusadas por Pinhal de “assaltantes”, fecharam demasiado tempo os olhos a uma gestão pelo menos sombria e, por isso, aventureira. Sendo certo e sabido que as instituições financeiras, particularmente da dimensão do BCP não devem nunca ser aventureiras. E, para termos a certeza de que as ditas autoridades fecharam os olhos, basta mais uma vez lembrarmos que, a determinada altura, já depois do BCP estar cotado em Wall Street, as autoridades americanas recusaram a aceitação da contabilidade do BCP, tendo o banco caído no caricato de ter umas contas para Portugal e outras para os Estados Unidos. Fossem as nossas autoridades de supervisão rigorosas e o “assalto” ao BCP teria provavelmente acontecido muito mais cedo.
Outro sorriso, desta vez doloroso pela recordação de alguns casos de grande sofrimento de que tive conhecimento pessoal, foi motivado pela consternação “sentida” por Filipe Pinhal relativamente ao valor das acções do BCP na Bolsa. Estão ao preço de uma bica, diz ele. Esquecendo, mais uma vez. Filipe Pinhal deve ser um homem de muito fraca memória. Porque se esqueceu com grande facilidade de que, ainda sob gestão sua e de seus pares, as acções do BCP compradas a cinco euros tinham perdido já mais de 60% do seu valor. Não hesitando o banco em exigir o pagamento de financiamentos por ele feitos a clientes seus tendo por garanto o valor das acções. Isto sim, isto é que pode, com inteira justeza, ser considerado um assalto.
Entendo a dor de Filipe Pinhal. Com efeito, sei, por experiência própria e de algumas centenas de quadros do BPA rapidamente despedidos depois do assalto do BCP, o quanto dói ver entrar estranhos pela porta dentro da casa que acreditamos ser nossa. È uma espécie de despejo sem aviso prévio. Mas, interesses da defesa judicial à parte, deveria utilizar os argumentos que usa com algum pudor. E, se tais argumentos podem ser de alguma utilidade para a sua defesa, deveria, pelo menos, assegurar-se que eles não cairiam na opinião pública. É que assim, seja qual seja o valor que esses argumentos venham a ter no julgamento do processo, esta ficará com a sensação de que o BCP, para além de ser objecto de uma gestão eventualmente ou potencialmente ruinosa, era conduzido por pessoas para quem o rigor dos factos não contava para nada.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 1/7/2010
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