VIAGENS AC IDENTADAS
O funcionamento do mercado das viagens oferece ao cliente muitos riscos. Basta um breve olhar sobre o modo como funciona para nos apercebermos disso. Pretendendo passar umas férias tranquilas, os clientes desse mercado encontram-se, mais vezes do que seria desejável e do que acontece noutros mercados, face a situações desagradáveis, transformadoras daquilo que deveria ser o paraíso num autêntico inferno. Veja-se isto. Para iniciar, o cliente entra numa loja de venda de viagens e escolhe um programa. Para a escolha, serve-se normalmente de informação prévia recolhida de amigos ou dos conselhos do agente de viagens quase sempre acompanhados de umas fotos e de alguma publicidade do operador turístico de viagens ou do destino pretendido. Estabeleça-se, desde já, uma diferença entre agente de viagens e operador turístico de viagens. O primeiro vende um produto – viagem propriamente dita e hotel com ou sem alimentação – que é preparado (produzido) pelo segundo. Muitas vezes acontece que o cliente está a comprar um produto que desconhece, que não pode ver primeiro, que não pode cheirar, nem provar, nem tocar, a um agente que, frequentemente, está na mesma situação do cliente – não conhece, não tocou, não provou, não cheirou o produto. Escolha feita, apesar desse contrato de compra ser extremamente bizarro pelas razões aduzidas, o cliente tem de pagar um sinal do contrato para possibilitar ao agente a reserva do produto. Primeira fragilidade: o cliente já desembolsou parte do preço e o sucesso do contrato, o seu cumprimento, fica na dependência do agente fazer ou não a reserva. Admitamos que a faz. Dependendo da credibilidade do agente junto ao operador, este pede ou não um sinal ao agente. Se chegarmos aqui como sinal entregue ao operador, está tudo a correr bem. O tempo avança e a data da viagem aproxima-se. O agente pede ao cliente o pagamento integral do preço da viagem. Novamente, entrega do dinheiro sem nenhuma garantia ainda de que a viagem se realizará. Agentes de viagem idóneos só cobram o resto da viagem contra a entrega dos documentos que representam o produto vendido. Mas, em caso de dificuldades e sem crédito, têm de cobrar primeiro do cliente final para, com o dinheiro recebido, poderem levantar no operador os ditos documentos que, só após, podem entregar ao cliente. Uma fragilidade dobrada para o cliente, portanto. Se tudo correr bem até aqui, ainda ficam os riscos da correspondência do produto efectivamente recebido com o esperado e pago, uma vez que, em muitos casos, quem efectivamente fornece o comprado é um quarto interveniente, o fornecedor dos bens e serviços finais adquiridos pelo cliente seja ele companhia aérea, explorador de um hotel, fornecedor de outros serviços turísticos.
A conclusão que retiramos desta descrição do funcionamento do mercado das viagens mostra não haver equilíbrio de segurança entre as quatro partes intervenientes no contrato de compra e venda: o cliente final, o agente de viagens, o operador turístico e o fornecedor do produto. Por reconhecer isso é que os poderes públicos decidiram rodear a actividade de algumas garantias para, em última análise, ressarcir o cliente final de algo que não corra bem em todo o circuito. E diga-se que não são poucas nem, teoricamente, leves tais garantias. Mas, para o que aqui nos traz, importa falar da caução de garantia que um intermediário no processo de venda de viagens deve depositar no Turismo de Portugal, uma instituição pública, por isso controlada pelo Estado. Tal caução está relacionada com o volume de vendas do agente ou operador turístico e com a natureza do que vende. E – é verdade, porque a tal questão tive de responder enquanto fui proprietário de uma agência de viagens – todos os anos, o Turismo de Portugal faz a inquirição de cada um deles sobre, essencialmente, duas questões: qual o volume de vendas e se o agente ou operador vendem produto próprio, isto é, viagens organizadas pelo próprio. Como é bom de ver, a caução a prestar por um simples agente de viagens (que apenas vende produto feito pelos outros) é muito inferior à caução a prestar por um operador de viagens (que vende o seu produto através de muitos, senão todos, os agentes de viagens). Tal caução pode ser representada por um depósito a favor do Turismo de Portugal ou, então, por uma garantia bancária a favor da mesma entidade. E só é útil quando, perdoe-se-me o termo, há barraca.
Dado o interesse público que repousa na articulação das condições de funcionamento do mercado com a caução prestada, era de esperar que o ente público que vela pela segurança dos consumidores, neste caso, o Turismo de Portugal, fosse intransigente, atento, capaz de evitar as manipulações que os agentes de turismo tenderão a fazer para que o encargo da caução seja o menor possível. Ora, foi isso que não sucedeu no caso muito actual da falência da Marsans, um operador de origem espanhola a actuar no nosso país também. Falência que deixou muitos turistas, com as viagens já pagas, sem as poderem fazer. Chega-se agora à conclusão de que, em vez de uma caução que se estima em 250.000 euros (como operador de turismo), o Turismo de Portugal tinha aceite da Marsans uma caução de apenas 25.000 euros (como simples agente de viagens). Desculpa-se o Turismo de Portugal dizendo haver recebido uma declaração da empresa atestando que não vendia produto próprio.
O mais bizarro disto tudo é que, provavelmente e de um ponto de vista meramente formal, a Marsans (Portugal) não terá mentido. O produto vendido pela Marsans (Portugal) era, em determinada medida, produzido pela Marsans (Espanha). Ao centrar-se meramente no conteúdo formal da declaração da empresa, em vez de atentar no seu conteúdo real – Marsans (Portugal) era, independentemente dos formalismos, apenas um braço da Marsans (Espanha) – o Turismo de Portugal prestou um mau serviço e incumpriu o seu dever de proteger os consumidores nacionais de um produto com regras de comercialização muito próprias.
O resultado final disto não vai ser muito agradável para os clientes portugueses da Marsans. Esta diz que vai devolver, em prestações, o dinheiro indevidamente recebido. Se isso acontecesse, muito me surpreenderia. Se era para devolver porque se apressou a cobrá-lo mesmo quando já sabia que não ia fornecer o produto correspondente à cobrança? Além disso, os clientes transformaram-se em credores da Marsans (aparentemente falida) sem qualquer privilégio especial; por isso, como pode a Marsans privilegiar uns credores em relação a outros? Acresce ainda que a Marsans espanhola afirmou que ia vender a empresa a outra especialista em recuperar empresas falidas, mas, no negócio, aparece envolvido alguém que está longe de ter idoneidade, dada a sua notória intervenção num caso de corrupção política ocorrido recentemente na Andaluzia. Não sei porquê, mas ocorre-me que ainda anda alguém a ver se ganha com a falência e não são os clientes da Marsans que ficaram em terra. Ficaria, no fim da lista, o Turismo Portugal, isto é, uma entidade pública, isto é, o Estado Português, como a possibilidade de evitar que pessoas inocentes sofressem prejuízos ou, pelo menos, os pudessem minorar. O que, como vemos, não aconteceu nem acontecerá. Deixando, em todos nós, esta amarga conclusão: pior do que cobrar-nos impostos pesadíssimos, é o Estado não nos garantir, pelo menos e de modo satisfatório, as condições de segurança a que temos direito. Porque pagamos impostos.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 8/7/2010
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