SEM SURPRESA
Os Leitores que não esqueceram o meu artigo de Outubro passado, intitulado " A SAÚDE DA SAÚDE", não ficaram, certamente, surpreendidos pelas declarações do Senhor Ministro da Saúde, segundo as quais o Governo está já a pensar fazer os cidadãos pagar mais para terem os cuidados de saúde que têm. Segundo ele, se a actual situação de crescimento exponencial nas despesas da saúde se mantiver, vamos ter a população dividida em três grupos. Um será subsidiado a cinquenta por cento. Outro, a setenta e cinco por cento. E outro a cem por cento.
Com efeito, naquele artigo eu dizia, a um certo momento, depois de tentar caracterizar o estado do nosso Serviço de Saúde:
" Uma vista de olhos pelas razões identificadas, traz à consciência a apreciação de que nada mais justo do que propiciar à população, nesta área da Saúde, os cuidados que ela merece. Mas, ao juízo esclarecido, logo surge a questão de saber se produzimos - ou pagamos, o que é o mesmo - ao nível exigido por esta qualidade. A qual nem sequer se aproxima ainda dos padrões já atingidos nos países mais desenvolvidos".
Para terminar o artigo colocando estas questões fundamentais:
"1.- Pode a Saúde ser cuidada tendo por pano de fundo o lucro que a iniciativa privada exige?
2.- Podemos continuar a esperar a melhoria dos cuidados com a Saúde com o nível de produtividade que, enquanto sociedade, temos?
3.- Podemos continuar a esperar ter os cuidados actuais de Saúde com o nível de impostos que pagamos?".
O Senhor Ministro acaba de dar a resposta. Tal como eu concluía naquele artigo, o Senhor Ministro começou já a preparar a população para o que nos surgirá aí para diante. Ou pagamos ou os cuidados de Saúde vão seguramente reduzir-se.
Todavia, colocada assim a questão, há uma falácia por resolver. E temos que estar preparados para pedir satisfações sobre ela aos nossos governantes, tanto actuais, como passados ou futuros. Vamos ver.
1.- A Segurança Social de que dispomos está periclitante, surgindo de vários lados a previsão de que, daqui por alguns anos, será incapaz de satisfazer os seus compromissos;
2.- A Polícia é pouca para garantir, de um modo satisfatório, a nossa segurança de pessoas e bens;
3.- Não estamos em guerra e as Forças Armadas são uma amostra daquilo que já foram um dia;
4.- A Justiça é lenta e imperfeita. Os Tribunais não funcionam com a celeridade que a segurança dos cidadãos exige.
5.- Se temos necessidade de recorrer aos serviços administrativos do Estado somos mal atendidos, devagar, muitas vezes imperfeitamente também.
6.- Pagamos, para além dos impostos, taxas a propósito de tudo e de nada. De radiodifusão, de radiotelevisão, de têvê por cabo, de saneamento, de recolha de lixos, de infraestruturas de abastecimento de água. Fala-se que vamos pagar uma taxa nas chamadas de telemóveis para pagar a instalação das antenas.
7.- Passamos uma ponte nova, pagamos. Andamos numa auto-estrada, pagamos.
E podíamos continuar por aí além, não fora o risco de enchermos o jornal só com este rol. Se, depois disto, ainda nos dizem o que aí vem para a Saúde - uma das poucas coisas quase gratuitas que o Estado nos dá (embora muitas vezes tarde e a más horas) - há perfeita legitimidade para retirarmos o véu falacioso que cobre tudo isto e perguntar: MAS, AFINAL, PARA QUE É QUE PAGAMOS IMPOSTOS? QUE É QUE NOS É DADO A TROCO DOS NOSSOS IMPOSTOS?
Temo muito responder a isto. Uma vez, quando me pediram que caracterizasse o Exército em tempos de paz, eu respondi mais ou menos assim: é uma instituição na qual existe um capitão para mandar que um sargento diga a um cabo para este mandar um soldado processar o vencimento dos quatro, ou melhor, o vencimento dos dois primeiros e o pré dos dois últimos. Temo chegar à conclusão de ter que explicar aos meus Leitores que o Estado Português é uma instituição na qual há uns senhores - os políticos - que criam umas leis que ordenam a outros senhores - os funcionários - que nos cobrem determinados impostos e taxas que cheguem para pagar o salário - e outras mordomias - a todos.
Esta a dicotomia à qual devemos estar atentos. Sobretudo num momento em que as contrapartidas oferecidas pelo Estado por impostos indubitavelmente crescentes são cada vez menores. Há uma necessidade enorme de reduzir os quadros que são pagos pelos nossos impostos tal como existem agora. Se todos os serviços anotados acima não funcionam ou funcionam mal é porque os recursos que lhe são afectos são demasiado escassos. E, todavia, são esses os serviços que nos interessam. Há que reduzir políticos e funcionários. Começando pelos primeiros, naturalmente. Se atentarmos bem nas funções das juntas de freguesia, se pensarmos que há mais de quatro mil em todo o país, se verificarmos que grande parte delas não são necessárias e se atentarmos na frente de luta imediatamente aberta pelo funcionários políticos das juntas de freguesia quando se pensou em encerrar apenas meia dúzia delas, talvez tenhamos uma perspectiva correcta do que nos está a suceder. Com os nossos impostos, estamos a pagar a milhares de pessoas que não dão - se calhar porque não têm modo de dar - nada ou quase nada em troca.
Assim, não devemos estar atentos apenas aos impostos que pagamos. Também ao que recebemos em contrapartida.
Uma outra falácia muito em voga é a de afirmar que a nossa carga fiscal é muito inferior à da generalidade dos outros países da Comunidade. Muito bem. A comparação seria tremendamente ajustada se, e apenas se:
Primeiro: Tivéssemos um rendimento per capita semelhante ao desses países;
Segundo: Recebessemos do Estado as mesmas contrapartidas.
O que visivelmente não é o caso. Tendo em conta o nosso rendimento per capita, a nossa carga fiscal é uma das mais violentas da Europa Comunitária. E se, por acréscimo, compararmos também as contrapartidas, aquela violência torna-se verdadeiramente assassina. É óbvio que, se tivéssemos um sistema de segurança social e de saúde idêntico ao que tem - só para buscar um país que conheço bem - a Dinamarca, claro que podiam levar-me mais impostos que eu não me importaria. E o curioso é que, além das contrapartidas dadas pelo Estado serem muito mais vastas ali, a verdade é que ninguém diz que o sistema está em falência ou em vésperas de ruptura.
A estratégia dos pequenos passos, transformando, para pior, tudo aquilo que é à nossa custa, mas deixando intocáveis os privilégios de quem decide e manda, não pode produzir efeitos eternamente. Vai chegar um momento em que os cidadãos acordarão e saberão, mais por intuição do que por racional exercício, que há outro modo de fazer as coisas. E que há que partir privilégios, sim, mas todos. Que belo exemplo seria para o país se, de um momento para o outro, quem manda decidisse:
- reduzir o número de deputados à Assembleia da República;
- reduzir os executivos camarários e os deputados às assembleias municipais;
- terminar com a existência das juntas de freguesia.
Eram três medidas só. Porventura não seria por isso que as regras de financiamento do Serviço Nacional de Saúde poderiam ser mantidas. Mas seria um exemplo que germinaria na nossa disposição de cada vez pagar mais por cada vez menos.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 22/2/2006
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