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11.6.10

CRÓNICA DA SEMANA (II)

O SABOR DOS DIAS

Os dias não têm sempre o mesmo sabor. Uns doces, outros amargos. Umas vezes sabem a laranja, outras a limão. Nos tempos que correm, mais vezes a limão do que a laranja. Mas, qualquer que seja o sabor, é deles que acabamos por fazer a salada de frutas que é a nossa vida.
Numa sociedade em que cada vez se vive até mais tarde e, de algum modo, se deixa de trabalhar mais cedo, as pessoas confrontam-se com o problema de terem muito mais tempo para reflectirem. A esperança média de vida aproxima-se dos oitenta anos e é bom recordar que todos os anos ela aumenta. Veja-se como, ainda não há muito tempo, se alguém atingia os cem anos de idade, era notícia de jornal; e hoje quase todos nós conhecemos alguém que ou já é centenário ou está muito próximo disso. Olhamos para eles, falamos com eles, e não vemos razão para celebrar. Afinal, começa a ser vulgar alguém chegar-se aos cem anos ainda com a maioria das suas faculdades intocadas. O que deixa no ar uma interrogação sem resposta, para já: não estaremos a condenar à ociosidade, cedo de mais, tanta gente cuja utilidade está longe de se escoar? Teremos a noção do sofrimento que estamos a infligir a esses nossos concidadãos?
Quem agora andar por essa “provecta” idade, tem muitas recordações. Assistiu, já plenamente consciente, à revolução que instalou a ditadura de vinte e oito. Talvez não soubesse bem porque é que ela estava a acontecer. Afinal, entre os quinze e os vinte anos, liga-se muito mais às raparigas do que à governação do país. É um tempo em que os dias sabem sempre a laranja, Mas talvez alguém lhe tenha dito que o que estava a acontecer era muito bom. Já não havia pachorra para aturar os democratas que tinham dado cabo das finanças do país. Talvez não tivessem ouvido o termo “pachorra”, que é bem mais moderno. Mas qualquer outro, a querer significar o mesmo, terão ouvido. Ainda mal haviam saído da miséria em que a República e tiveram que arcar com as privações que um conflito enorme entre as nações – de que, felizmente, não fomos parte activa, embora grandemente passiva – gerou. Estariam, por essa altura, a ter os primeiros filhos. Que alimentavam com os géneros que as senhas do racionamento permitiam adquirir. Terão sido dias de sabor a limão, todavia doce porque os dias lá de fora sabiam a fel. O conflito acabou. O mundo entrou em dias de sabor a mel. Desenvolvimento por todo o lado, a felicidade dos anos sessenta para quase todo o mundo ocidental. Uma felicidade que não chegou aqui. Aqui os dias continuaram a saber a limão e, pior do que isso, passaram a saber a fel. Quando julgavam que quer eles próprios, quer os filhos, tinham escapado ao conflito que ia destruindo o mundo todo, surgiu um conflito particular. Foi no sabor desses dias, que vão do final do conflito mundial até ao fim do conflito particular, provocado este pelo fim da própria ditadura, que esta perdeu toda a razão de existir. Mas os personagens imaginários desta crónica continuaram em frente. Uma manhã de Abril escancarou-lhes as janelas da esperança. Surgiram novos políticos. Não eram já os estafadores da primeira república. Pelo menos pareciam. Prometiam-lhes mundos e fundos. Mundos feitos da economia de gastos devido ao fim da guerra. Fundos pagos por essa economia. E assim pareceu ser durante algum tempo. Para adoçar ainda mais o sabor dos dias que começavam a ser da velhice – eles ainda diziam e dizem velhice – ou da terceira idade, como se diz agora, o país deles, cuja história do último século eles atravessaram, passara a fazer parte de uma grande família. Uma família que até aí lhes tinha provocado inveja. Inveja não! Eles nunca foram invejosos! Lhes tinha provocado fome e sede de outros sabores. Mas aí estava, a família também era deles. A economia de meios, devida ao fim da guerra privada, não se tinha sentido por nenhures. Mas a da grande família ia sentir-se. E levemente se sentiu. Muito pouco para os montões de recursos que a família enviou. Os dias com sabor a laranja não duraram muito.
Hoje, eles dizem-se velhos. Num cuidado meramente formal que a política correcta nos ensinou, os demais dizem-nos idosos. Ou veteranos. Ou na terceira idade. Não lhes importa muito o que lhes chamam. Percorreram o quase século de vida e voltaram ao ponto donde saíram. Então, o seu país (eles chamavam-lhe, então, a sua pátria) só tinha dívidas. Hoje, idem. Os velhos (lá estão eles a teimar!) de então eram os desprotegidos da sociedade. Hoje, estão a começar a sê-lo. Os chefes falavam muito e guerreavam-se sem quartel. Hoje, idem. Todos falavam e ninguém tinha razão. Hoje, idem. Comer custava os olhos da cara. Hoje, idem. Se se constipavam, amenizavam, o sofrimento com papas de mostarda e linhaça. Hoje, estão muito perto de isso. Olhavam para a frente e não viam o horizonte. Hoje, idem. Para eles, os dias voltaram a ter o sabor amargo e ácido do limão. Um ou outro com quem falo, antevê mesmo que vamos sair para uma longa noite, que tanto pode durar quarenta anos, tal e qual a outra, como pode não durar nada porque, simplesmente, se acabam os frutos.
Costuma dizer-se, por aí, que podemos estar a cometer um crime sem nome relativamente aos nossos filhos, não lhes deixando hipótese de futuro. Porventura estamos. Mas eu acho mais que estamos acometer um crime sem nome relativamente aos nossos pais. Eles não mereciam “isto”! Depois de tudo o que passaram, depois de terem provado o fel dos dias que tiveram de viver, depois de terem aguentado no lombo a chuva caudalosa e fria e o sol de fogo, trabalhando esforçadamente para nos deixarem melhor, depois de terem preferido beber dias de limão para deixarem os de sabor a laranja para nós, eles não mereciam isto! Os dias por eles atravessados podem ter sido, na sua maioria, amargos. Mas não há maior amargura do que o sabor da traição. E o estado a que conduzimos o nosso país – a pátria deles – é uma profunda traição ao seu abnegado labor.
Todavia, a redenção ainda é possível. Ainda podemos redimir-nos. Talvez já não a tempo de que eles a ela assistam. Mas, se nos redimirmos, teremos, pelo menos, honrado a sua memória. Se é que honrar a memória dos antepassados ainda tem algum significado nestes dias de sabor a fel que atravessamos.
Será que estamos dispostos a trabalhar tão arduamente como eles trabalharam? Seremos capazes de trabalhar como eles ainda estão dispostos a trabalhar? Seremos capazes de seguir o seu frutuoso exemplo? Seremos capazes de reconhecer a sabedoria neles acumulada pela longa experiência vivida? Seremos capazes de lhes dar, na sociedade, o papel a que têm direito e que, pelas suas capacidades, ainda justificam? Seremos capazes de produzir algum sumo de laranja para lhes dar a provar, a eles que tão pouco tiveram durante os seus dias? Se não formos capazes disto, então não seremos capazes de nada.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 10/6/2010

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