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17.6.10

CRÓNICA DA SEMANA (II)

CUMPLICIDADE E DISCIPLINA

Tinha eu treze anos. Traquina, como todos os miúdos daquela idade, apesar de já trabalhar. Por alturas da romaria do Senhor de Matosinhos. Era aluno do primeiro curso nocturno daquela escola, inaugurada recentemente. Consegui separar quinze tostões – o que o tempo faz: menos de um cêntimo actual – para comprar, num daqueles bazares de romaria que enchiam o arraial, um pistola de fulminantes. Dos que faziam estrondo ao disparar. Com ele no bolso, fui para as aulas, que decorriam das sete às dez da noite. Turma mista, então permitida apenas nos cursos nocturnos. Uma das aulas desse dia, a de Geografia. Um professor que guardo nas minhas boas recordações, já falecido. O doutor Antero da Hora Marques.

Primeira nota: os alunos desse tempo guardavam, para sempre, os nomes dos seus professores.

O professor dirigiu-se ao quadro, para nele escrever um longo sumário da aula. Enquanto ele estava de costas, eu decidi “armar aos cágados”, mostrando o meu tesouro – a pistola – às raparigas que, a meu lado, me acompanhavam no curso. Subitamente, o desastre. Pistola empunhada, qual cowboy de trazer por casa, eis que, inadvertidamente, pressionei o gatilho. Estava um fulminante no seu lugar mortal. E a sala foi inundada com o barulho do tiro mais audível da minha vida. O silêncio da aula pareceu ainda mais silencioso. No quadro, sempre de costas voltadas para a sala, sem sequer rodar a cabeça. O doutor Antero disse, na sua voz pesada de adulto:
- O aluno que fez isso abandona imediatamente a sala – e continuou a escrever no quadro.

Segunda nota: a dignidade do castigo aplicado pelo professor, como se não quisesse sequer saber quem fora o perturbador dos trabalhos.

Expulso, pela primeira vez, de uma aula, fui para casa mais cedo. A minha mãe, enfermeira, quis saber porque é que eu estava a chegar mais cedo. Apesar de estrafegada pelos longos dias e algumas longas noites de trabalho, queria sempre saber o que se passava comigo na escola. Não menti. Estava certo de que, se fosse apanhado numa mentira, o castigo atingiria proporções inimagináveis para um rapaz de tenra idade. Depois da história, a minha mãe tirou-me a pistola, quinze tostões deitados ao lixo, e aqueceu-me o sítio onde as costas mudam de nome.

Terceira nota: a cumplicidade evidente entre a minha mãe e o professor na tarefa, que os dois tinham por nobre, de edificar um ser adulto responsável e respeitador das regras de convivência.

Há dias, mais de meio século depois do narrado, fui convidado para participar num debate, organizado pela associação de pais dessa minha escola, com o objectivo de analisar a situação disciplinar nas escolas, inventariar as razões dela e elencar possíveis vias de melhoria da situação. Todos os pais tinham recebido o convite para estarem presentes. A escola tem centena de alunos. Isto é, tem centenas de encarregados de educação. Na plateia, para o referido debate, duas mãos cheias de professores e CINCO pais.

Quarta nota: A cumplicidade antiga, entre pais e professores, tendo em vista a educação dos jovens, desapareceu.

Naturalmente, meditei sobre as razões de tal desaparecimento. Porque os pais de agora não têm tempo? Não pode ser. Os pais daquele tempo trabalhavam como hoje já não se trabalha. Porque os pais amam menos os seus filhos? Não pode ser. De um modo geral, os pais amam por igual a sua prole. Talvez amem é de maneira diferente. Porque os professores deixaram de ter vocação para a sua função? Talvez, na média, isso possa ser parcialmente verdade. Com a liberalização do ensino superior, passamos a ter muitos licenciados sem que o mercado do trabalho houvesse crescido na mesma medida, o que levou muitos deles a buscar refúgio profissional no ensino, mesmo não tendo vocação para isso. Mas parecia-me razão insuficiente para matar a cumplicidade. O facto é que, não só pelo exemplo que tinha diante de mim, mas também pelas notícias que, constantemente, vêm a público, concluía ser aquela cumplicidade um dever desaparecido e toda a gente, nessa espinhosa mas gratificante função que é educar, apenas invocava direitos. Os alunos. Os pais. Os professores. Os governantes. Até aquilo que se dizia ser “fazer os deveres” hoje nem sequer é “fazer os trabalhos”.

Quinta nota: Tínhamos passado de uma sociedade de deveres para uma sociedade de direitos. A educação dos mais novos transformara-se de dever dos mais velhos em direito dos mais novos.

Uma tragédia. Porque, sem educação, a sociedade se encaminha para a dissolução. A educação é uma função natural, tão natural que até entre os animais irracionais ela se verifica. Uma tragédia assente numa convicção errada das sociedades actuais. Acreditamos que temos direitos quando, na realidade, só temos deveres. A liberdade de cada um é o espaço que resta depois de cumprirmos todos os deveres. A Declaração Universal dos Direitos do Homem deveria chamar-se a Declaração Universal dos Deveres do Homem. Porque nenhum direito individual subsiste se os outros homens não cumprirem o dever de respeitar o seu próximo. Eu até percebo os políticos, quando mexem no sistema educativo mais depressa do que levam as leis a tomarem corpo na actividade quotidiana. Todos querem deixar a sua impressão digital numa esfera que julgam determinante. E é. E seria, não fora essa sanha transformadora que destrói qualquer trabalho profícuo, duradouro. Mas os políticos são para um momento da vida das pessoas. Mas os professores e os pais, não.

Sexta nota: Os professores e os pais são-no para toda a vida.

E se o são, não entendo como é que se dão ao luxo de produzir um trabalho que os envergonhará pela vida fora. Não consigo entender como é que, pelos menos eles, pais e professores, não compreendem que cada infante, cada jovem, que lhes cai nas mãos, será amanhã o produto da sua tarefa educativa. No percebo porque é que, sendo assim, não são cúmplices na tarefa dedicada de ensinar aos seres em formação que a vida é feita de deveres e não de direitos.

Sétima nota: Cumplicidade entre pais e professores na sagrada tarefa educativa e compreensão de que temos deveres e não direitos, eis os condimentos para construir uma sociedade melhor.

Tenho muitas dúvidas sobre se poderemos regressar à cumplicidade antiga. Naturalmente, num patamar diferente de evolução, mas com respeito pelo essencial das regras que a regiam. A vida educativa tornou-se muito mais complexa, graças ao desenvolvimento das influências exercidas sobre os educandos, extravasando hoje, muito, as oriundas dos pais e dos professores. Por isso tornando muito mais exigente a tarefa para estes dois últimos factores de educação.

Nota final: Tenho para mim que, se tal cumplicidade não regressar, iremos assistir à acentuação da degradação de que, todos os dias, os órgãos de informação e a experiência directa vivida nos dão conta. E, por isso, à morte vergonhosa da sociedade tal como hoje a entendemos.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 17/6/2010

2 comentários:

Gaivota Maria disse...

Lavaste a alma e com toda a razão

cidissima disse...

Você não só lavou a alma como mostrou aos seus leitores as diferenças bizarras do ontem e do hoje.
A sua explanação em forma de flashback veio de encontro ao caos atual oferecido pela libertinagem itinerante.
O desrespeito, a ociosidade, a falta de interesse, a dissimulação, a conveniência são alguns dos tópicos abrangentes no lar e na escola.
Pais e filhos em completo conflito!
A negligência familiar gerando filhos irresponsáveis, alheios aos bons costumes, sem noção de educação, cidadania, respeito aos mais velhos, indiferentes à sensibilidade humana.
Concessões sem-limites! Eis um dos grandes problemas!
Consumistas de plantão! Querem e exigem.
Estas biônicas criaturas são robôs teleguiados!!!!
É uma franquia do apocalipse!

Aparecida