MENDICIDADE
Luzida delegação empresarial foi pedir ao Senhor Presidente da República protecção contra a invasão de capitais estrangeiros, a progressivamente tomarem conta dos centros de decisão do tecido empresarial português. Da notícia, colhi para reflexão quatro pontos:
1.- O conteúdo do pedido;
2.- A entidade pública a quem era feito;
3.- Os pedintes;
4.- Os ausentes.
Recordei que há uma boa meia dúzia de anos, também eu usei um argumento semelhante. Decorria a OPA do Banco Comercial Português sobre o Banco Português do Atlântico. O capital do BCP era maioritariamente detido por entidades estrangeiras, enquanto o do BPA era detido essencialmente por cidadãos e entidades retintamente portuguesas. Não mudei de opinião, entretanto. Acho que os poderes públicos devem esforçar-se por manter o tecido empresarial português em mãos portuguesas, dentro dos compromissos internacionais que o país tenha assumido. Mas entendo outra coisa também. É que o proteccionismo dos poderes públicos não pode ser bacoco, espécie de protecção da ineficiência. Nem os tratados internacionais de que beneficiamos o permite, em o interesse nacional o aconselha. Curiosamente, o Primeiro Ministro respondeu mais ou menos nestes termos. Penso que tem razão. A protecção dos empresários portugueses por decreto-lei não só é história de tempos cujo regresso se não deseja, como sempre deu maus resultados. Se Portugal tem alguma hipótese de sobrevivência económica ela não está em colocar o capital das empresas na sua mão por determinação legal. Tal como o Primeiro Ministro disse, é através da eficiência empresarial, do reforço da competitividade nacional que a iniciativa empresarial deve combater a concorrência estrangeira. E aqui, sim, é que os poderes públicos têm muito para fazer. Proporcionando aos empresários portugueses condições de se poderem bater com aqueles. Por exemplo, dando-lhes uma máquina pública eficiente, que lhes não faça ganhar cabelos brancos antes de conseguir uma decisão. Ao colocar os seus queixumes ao Senhor Presidente da República, do modo como foi noticiado, a luzida delegação assumiu o indescritível papel dos miúdo que vai fazer queixa ao pai de que outro lhe quer bater na escola.
Estranhei terem os empresários em questão escolhido, em primeiro lugar, o Senhor Presidente da República para apresentação das suas preocupações. Porque não é matéria que a ele diga respeito, senão longínquamente. Melhor seria terem apresentado os seus pedidos directa e imediatamente ao Senhor Primeiro Ministro. Não consegui vislumbrar a razão para a atitude assumida pelos empresários. Não quis aceitar a única que me pareceu plausível. A da arrogãncia de se julgarem acima do Governo do País. Deus nos livre que assim fosse. O papel dos empresários, todos os empresários, grandes e pequenos, é importantíssimo. Nada justificaria qualquer arrogância de umas dezenas de empresários que, apesar de grandes, não representam para o país nada que se compare ao que produz o esforço das centenas de milhar de pequenos empresários existentes. Os quais é que fazem funcionar o país.
Talvez devido à intervenção do Primeiro Ministro, em resposta quase imediata ao acto dos empresários, na última segunda-feira a mesma delegação visitou este. E, ao contrário do que sucedera na visita a Belém, os empresários tiveram o cuidado de afirmar o seu não desejo de protecção governamental e de que o almejado objectivo – o da manutenção, em Portugal, dos centros de decisão do tecido empresarial – assente no mérito dos empresários portugueses. O que me deixa algo perplexo. Afinal o que foram pedir os empresários? Que o Governo deixe que o seu mérito atinja o objectivo pretendido? Mas é evidente que sim. Não é preciso pedir isso. Se, porventura, capital estrangeiro fizesse, neste momento, uma OPA a alguma empresa cotada na Bolsa, apenas porque ela está muito barata, será que isso não significaria demérito dos empresários portugueses que a possuem e gerem? Que poderia fazer o Governo em tal circunstância? Proibir uma qualquer OPA? Francamente, se ainda percebia os objectivos da delegação com o conhecimento que dos factos tive na diligência junto do Senhor Presidente da República, deixei de os perceber de todo com a visita ao Senhor Primeiro Ministro e, sobretudo, com os esclarecimentos que eles acharam por bem dar à opinião pública.
Dos presentes na delegação, dois houve que particularmente chamaram a minha atenção. José Manuel de Melo (Grupo Melo) e Jorge Jardim Gonçalves (Grupo BCP). Ironia das ironias. O poder, nas empresas, está definitivamente ligado à detenção do capital. É estultícia julgar o contrário. Acontece que, por desenvolvimentos havidos na parte final do século passado, houve, em muitos casos, sobretudo nos grupos grandes, a separação entre a detenção do capital e a gestão, entregue esta a profissionais. Mas, como é óbvio, tal só acontece porque o capital “deixa”. E “deixa” enquanto as coisas correrem bem. A expressão, usada pelos empresários, de intercessão pela “manutenção dos centros de decisão” em Portugal é um eufemismo dificilmente inteligível. Que querem eles dizer com isso? Que o capital tem que estar em mãos portuguesas? Que o capital pode ser estrangeiro desde que a gestão esteja em Portugal? Ou que até a gestão pode estar no estrangeiro, desde que os gestores sejam portugueses? No primeiro caso, não se vê, nestes tempos de espaços económicos alargados e de lugar à competência, como é que se pode conseguir, a não ser com o mérito dos empresários. E, obviamente, nem o Senhor Presidente da República nem o Senhor Primeiro Ministro podem dar esse mérito aos empresários portugueses. No segundo caso, não se vê em que é que as coisas se modificam, tendo em conta as relações capital/gestão que acima enunciei. No terceiro, é legítimo perguntar se pode um gestor português conduzir o capital estrangeiro a seu bel-prazer, se necessário contra os interesses dos detentores estrangeiros do capital. A expressão usada pelos empresários parece, assim, ter sido utilizada dada a presença de Jardim Gonçalves na delegação. Porque este nunca poderia pedir que os nacionais fossem privilegiados. Porque ele está (ou pelo menos esteve muito tempo) ao serviço de interesses de capital maioritariamente estrangeiro. Se calhar, a isso sendo devidas as notórias dificuldades sentidas actualmente pelo seu Grupo. Porque razão é que teve que se associar a um grupo estrangeiro chamado Eureko, do qual agora parece que vai sair a toda a velocidade, para obviar a tais dificuldades? Igual se diga a propósito de José Manuel de Melo, capital retintamente nacional, que não hesitou em aliar-se a capital maioritariamente estrangeiro - como o BCP era – para deitar a mão a parte de um grupo retintamente português – como o BPA era.
Mas foi nas ausências verificadas em tal delegação, sobretudo numa ausência, que colhi o verdadeiro sentido da diligência. Parti, basicamente, da seguinte questão: porque é que da delegação não foi parte o maior dos empresários portugueses fora da actividade financeira, o de maior história, o de maiores realizações, chamado Belmiro de Azevedo? Este, tal como outros, não se cansa de reclamar contra o paternalismo do Estado relativamente à actividade económica. A sua ausência só pode ser interpretada como sinal de coerência. Uma coerência que terá faltado a muitos dos outros. Mas há outras razões pelas quais Belmiro não podia estar presente naquela delegação. A primeira das quais é que ele nunca precisou da protecção do Estado para realizar o maior grupo económico português não financeiro, para se defender dos ataques da concorrência estrangeira, para, inclusivamente, ir atacar essa concorrência nos seus mercados de origem, como a presença do seu Grupo nos quatro cantos do mundo e em inúmeras actividades demonstra. E também porque Belmiro detesta empenhar-se junto do Poder Político. Não gosta da mendicidade política, por mais luzida seja a vestimenta do pobre. Há um valor que ele coloca acima de todos os outros, neste domínio económico-empresarial: o valor do trabalho e do mérito. Belmiro sabe que o Poder Político cobra sempre os pedidos que satisfaz. E se há alguma coisa que Belmiro detesta é estar subordinado ao pagamento de facturas por favores prestados. Em síntese, é meu entendimento que a ausência de Belmiro de Azevedo da luzida delegação deu-se por uma razão maior: a atitude dos empresários portugueses que a constituíam era, para usar um eufemismo, de mendicidade. E ele prefere trabalhar a mendigar.
Curiosamente, as atitudes de Belmiro – se foi esta a razão e outra não vejo – e do Primeiro Ministro acabam por encontrar-se. Ambos são de opinião de que é na procura da competitividade – uma palavra que faz parte do vocabulário do primeiro há mais de um quarto de século – que os empresários portugueses têm de encontrar o seu caminho. E não na procura de protecções e favores que, qualquer que seja a sua forma, não passarão de mendicidade. Opinião que, a ser justa, reduz a luzida delegação ao papel de interlocutora menor nas tarefas do futuro.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 30/10/2002
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