MISTÉRIO
Esfreguei os olhos, para ver se estava acordado. A cena desfazia uma série de pensamentos feitos que costumam habitar em nós. Ver tantos Contribuintes a barafustarem, a empurrarem-se, inclusivamente a tentar furar barreiras policiais, para pagarem os seus impostos em atraso que não os deixavam pagar, é o nosso habitual mundo às avessas. É a destruição de lugares comuns na área fiscal. É a confirmação de que o Governo e, particularmente, a Senhora Ministra das Finanças estava certa e os outros errados. Incluindo eu próprio. Como conto.
Antes da promulgação do decreto sobre o último perdão fiscal, a Presidência da República consultou a Associação de Contribuintes a que presido, para conhecer os argumentos que nos opunham ao perdão fiscal. E, entre eles, estava o nosso convencimento de que, para além da injustiça, a medida não teria grandes efeitos práticos. O nosso raciocínio era relativamente simples. Perdões fiscais sucessivos desacreditam a ameaça de que se trata de uma última oportunidade de regularização. Haverá sempre outro, pensar-se-á. E, portanto, quem não pagou na hora, vai ficar a aguardar o próximo. Vê-se hoje que este raciocínio estava errado. O valor dos impostos recuperado e a incrível cena testemunhada que acima descrevo e que todos vimos, é disso certificado. Aliás, aquando daquela intervenção da Presidência da República, ficamos a saber que o Governo esperava efectivamente recuperar uma grossa maquia e que um dos seus argumentos principais era o de que não havia outro modo de conseguir essa recuperação. Faço o mea culpa sem grande constrangimento. Porque entendo que o fenómeno é uma lição. E que vale a pena errar se disso resultar uma boa lição. O que é que leva tantos portugueses a agirem assim? Não pagando os seus impostos no momento certo, tranquilamente, sem atropelos, para depois acorrerem em massa a pagá-los, no meio da maior confusão, com perdas de tempo enormes e confrangedoras? Penso que devemos, todos os que anseiam e se batem por uma Pátria organizada, ordenada, de bons cidadãos conscientes dos seus direitos mas também dos seus deveres, meditar sobre o fenómeno e encontrar-lhe as razões. Se tivermos sucesso nesta empreitada, talvez consigamos dar passos na direcção almejada.
Uma boa explicação é o nosso espírito latinamente “borlista”. Que nos faz encher o metropolitano do Porto quando se pode viajar de graça para, no dia seguinte, protestarmos contra o preço de passagens que até nem são caras se atendermos ao conforto e à rapidez do transporte. Que nos faz rejubilar quando é cometida a tremenda injustiça relativa de abolir portagens no nosso pequeno meio metro de autoestrada à custa de todos os outros, mas que nos faz interromper a circulação se as portagens são restabelecidas, interrompenso a injustiça. Que nos faz fazer greve se, como manda a equidade, continuarmos a pagar para a Caixa Nacional de Pensões as nossas contribuições quando passamos à reserva. Como se deixássemos de dispor de todos os serviços do Estado pelo facto de termos deixado de trabalhar. Um espírito “borlista” que nos faz acorrer em massa a tudo quanto cheire a “de graça”. Nesse sentido, até os que protestamos contra o perdão – os cumpridores – contribuimos para o sucesso da medida governamental, por termos empolado o que seria o benefício dos incumpridores. Se o bónus era tão injusto, como diziam os relativamente prejudicados, então seria de aproveitar, terão pensado os beneficiados. O que, a ser verdade, mostra uma consciência cívica e extremamente distorcida, que há que inverter. “Deixa-me aproveitar, porque se prejudica o meu contrário, beneficia-me a mim”, é um pensamento civicamente inadmissível.
Uma outra razão, mais sofisticada, pode estar na origem do fenómeno. Não acredito que, nas generalidade dos casos, se deixe de pagar impostos deliberadamente, podendo fazê-lo. Pode acontecer em alguns casos, mas não é seguramente esse o caso comum. As pessoas não pagam os seus impostos – não estamos a falar na evasão, mas sim no atraso de pagamento de impostos liquidados, de que o Estado tem conhecimento – porque o pagamento dos impostos aparece como última prioridade na aplicação do dinheiro disponível. Não se paga porque já não sobra dinheiro do resto. E compreende-se porquê última prioridade. Em primeiro lugar, porque as pessoas se sentem espoliadas devido à enorme carga fiscal de que são objecto. Depois, porque há a consciência generalizada de que os dinheiros públicos são mal administrados. E, por fim, porque o credor, neste caso o Estado, vai demorar anos a tentar cobrar coercivamente. Podendo mesmo, devido à sua gigantesca inércia, vir a deixar prescrever a dívida. A espada da penhora ficará suspensa por longo tempo e pode até nem cair. Face a um perdão de custos acrescidos para pagamento já e entre a dúvida se a espada cairá ou não, muitos aproveitarão do benefício. Se esta razão for relevante no fenómeno a que assistimos, então o fenómeno não se vai ficar por aqui. É que, se o dinheiro faltou para pagamento no momento apropriado e se foi desencantar, agora, para aproveitar do benefício, então o dinheiro vai continuar a faltar aí para a frente. E o processo das amnistias fiscais sucessivas confirma-se. Com falta do dinheiro entregue agora, as pessoas não vão pagar aí para a frente, Vão continuar a atrasar-se. À espera do próximo perdão. E haverá problemas orçamentais já neste ano que vai iniciar-se, por falta de pagamento de impostos. Algo a que, penso eu, a Ministra das Finanças deveria estar bastante atenta.
Uma terceira razão pode ter sido, efectivamente, o medo de que o Estado cumpra o que disse. E de que vá ser impiedoso com os que não aproveitaram o benefício-injustiça. “Não diga, depois, que o não avisámos”, dizia a publicidade ao perdão. Uma ameaça latente susceptível de provocar efeitos. Julgo que deveríamos ficar todos contentes se fosse esta razão a de maior peso na atitude dos contribuintes que motiva estas notas. Porque isso significaria que, pelo menos desta vez, as pessoas acreditam que o Governo é capaz de fazer prevalecer a Lei, de modo expedito. Seria esta, a ser, a maior vitória da Ministra das Finanças. Ter escrito direito por linhas tortas. Porque precisamos de um Estado – leia-se, Governo, que o representa – credível. Para que seja possível colocar o combóio na linha. Algo que veremos daqui a pouco. Se assistirmos, já no início do ano, a alguns casos exemplares, de accionamento dos mecanismos de cobrança coerciva, então a credibilidade subirá para níveis pouco usuais desde há muito tempo.
Do fenómeno ficam algumas ideias complementares que vale a pena deixar expressas.
Ao decretarem uma greve para um momento em que o país – e não apenas o Governo – necessitava deles, os funcionários públicos das Finanças justificam tudo quanto o Governo se propõe fazer neste domínio. Redução dos quadros, congelamento dos salários, redução das pensões, tudo! Os funcionários públicos que decretaram e aderiram a esta greve prejudicaram tudo e todos. Olharam apenas para a sua barriga. Tal como aconteceu com a greve geral de há poucos dias, extremamente antipática, esta não colheu simpatias. E o movimento sindical vai-se afundando nestas greves impopulares, prejudiciais para toda a comunidade. E vai reforçando, a olhos vistos, este Governo.
Será, no mínimo, pouco inteligente, se o Governo não alargar, por dois dias apenas, que tantos durou a greve, a vigência do perdão. Já que a injustiça foi cometida, que possam dela beneficiar todos os que isso pretendam. E foi visível que ficou muita gente a querer pagar sem poder fazê-lo.
As oposições estiveram caladas quanto à injustiça que o perdão fiscal representava para com os contribuintes cumpridores. Vá-se lá saber porquê. Dificilmente se pode admitir que fosse por espírito de colaboração com a Ministra das Finanças, a quem têm procurado tolher os passos. Mas era bom que estivessem atentas. Porque é sempre das críticas da oposição que pode vir o contributo maior para a defesa dos injustiçados.
Finalmente, é de perguntar o que vai fazer o Governo com os Contribuintes cumpridores. Muito bem, injustiçou-os no perdão fiscal, em nome dos interesses mais imediatos do Estado. E agora? Como vai reconhecer que os seus maiores aliados são os que cumprem, não os que incumprem? Além disso, como lutar contra as três razões que acima anotei como explicativas do fenómeno inusitado, bizarro, inesperado, de ver os cidadãos a fazerem uma “guerra” para que os deixem pagar os seus impostos? Julgo que um desconto de pronto pagamento, pelo menos, era bem vindo. Por exemplo, 2%. Repunha alguma justiça. Era uma pequena “borla”. Mudava em alguma medida a prioridade do pagamento dos impostos. Credibilizava o Estado. Mas, como de costume, tenho poucas esperanças que o Governo esteja interessado nisso tudo. A fome de dinheiro é muito grande para permitir “borlas” de boa vontade. O Estado só dá “borlas” quando é obrigado a isso. Atropele, então, quem atropelar.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 31/12/2002
1 comentário:
Interessante.
Completanto o seu título: Será mesmo o Mistério...ou será que vamos continuar a ser levados pelo Mistério da Fé...
Saudações Marítimas
José Modesto
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