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26.1.11

MEMÓRIA

CONTRADIÇÃO

Por um momento, raro embora, estou de acordo com Carvalho da Silva, o líder da Intersindical. Os funcionários públicos não são nenhuma cãozoada. Na medida em que uma cãozoada é uma matilha de cães e só cães. E nós sabemos que os funcionários públicos não são todos iguais. Que, tal e qual nas outras profissões, há funcionários públicos de muita qualidade. Muitos, esforçados servidores, não se poupam a esforços para corresponder ao que deles se espera. Outros, muitos, para quem a repartição, ou a escola, ou o posto médico, ou o tribunal, ou a câmara, mais parecem um local de veraneio. São imensas, sem conta, as histórias que chegam ao meu conhecimento. Para já não falar na experiência própria. Funcionários que lêm o jornal no seu local de trabalho. Que marcam o cartão de ponto e logo fogem. Para o bar. Para o cabeleireiro. Para o supermercado. Que ficam em casa, com a alegação de doença, ao primeiro pingo do nariz, se não sem razão alguma. Já é mais difícil, agora, estar a jogar a batalha naval com o computador. Mas ainda se consegue. Ou ir para as salas de chat da internet, se há condições para isso. Porém, se a qualidade dos funcionários públicos é igual, em média, à de tantas outras profissões, à de tantos outras categorias de empregados, o problema dos maus funcionários ganha maior dimensão e importância na função pública. Porque os funcionários públicos são pagos pelo nosso dinheiro e não pelo de algum patrão privado. E devido à prática ausência de sanções.

Se falamos com um funcionário público e abordamos este tema, encontramos quase sempre dois argumentos. O primeiro, que os funcionários públicos não são todos iguais. Com o que acima manifestei o meu acordo. E o segundo, que, na função pública, não há incentivo nenhum ao trabalho esforçado. Como há uma semana era dito numa coluna deste jornal, "o funcionário público esforçado apenas ganha chegar mais cansado à idade da reforma". É um argumento que deve ser considerado cautelosamente. Porque entendo que tal argumento, paradoxalmente, só se aplica aos funcionários públicos esforçados, relativamente aos que nada ou pouco fazem.

Os funcionários públicos gozam de um privilégio que mais ninguém tem no país. Um privilégio no qual, se atentassem bem, encontrariam incentivo a esforçarem-se como ninguém. Um privilégio sempre valioso. Mas cuja valia surge, desmedida, inaudita, esmagadora, em tempos de crise como os que vamos vivendo. Enquanto todos os dias centenas de trabalhadores vão caindo na miséria do desemprego, o funcionário público tem o seu emprego garantido. Enquanto centenas de milhar de portugueses vão olhando as mãos vazias de pão, o funcionário público vê o seu ordenado mensal creditado na conta bem antes de ter acabado o mês de trabalho que o justifica. Enquanto outros milhares de portugueses vão recebendo, tarde e a más horas, o funcionário público recebe na hora certa. Enquanto os pequenos comerciantes vão olhando a gaveta vazia, o funcionário público continua a sacar os seus cheques, por magros que sejam, com regularidade. O país - isto é, todos nós - pode falir. Os portugueses que dão crédito ao Estado podem esperar meses para receber o seu. Pode o Estado pagar tarde e a más horas aquilo que consome. Mas, na hora certa, o ordenado do funcionário público estará na sua conta. Para o funcionário público, tanto faz que faça sol ou chuva económica, que faça calor ou frio no país. O funcionário público, sempre sentirá, pelo menos, a tepidez de um clima outonal. Privilégio incrível, em tempos apregoados como sendo de igualdade. É aqui que chega o meu desacordo com o tal líder sindical. É que ele não vê que ao lutar pelos funcionários públicos - como seguramente lhe compete - mas sem chamar a atenção para os privilégios destes - como também lhe deveria competir - está a ser tremendamente injusto para com todos os demais portugueses que no trabalho encontram a única fonte de seiva. Quando encontram trabalho.

Sendo assim, o tal argumento - de que o funcionário esforçado apenas chega mais cansado ao fim da carreira - apenas é válido no plano interno dos funcionários, na oposição fundamental que se estabelece entre os que pretendem cumprir e aqueles que não cumprem. Os esforçados fazem jus ao privilégio do emprego vitalício. Porque ganhando pouco, apesar de tudo tentam cumprir. Os outros, os que não fazem pelo menos o que podem, isto é, o seu dever, não justificam o privilégio. E esta é uma questão que deverá colocar-se - que seguramente se colocará - num futuro próximo. Na impossibilidade de melhorar as condições de retribuição dos funcionários públicos - não só porque o Estado está meio falido, mas também porque tal seria injusto para os que não cumprem - há que criar condições para despedir os funcionários públicos preguiçosos, incompetentes, desleixados. E, assim, será seguramente, possível, pagar melhor aos outros.

Não obstante este longo preâmbulo, acho que o Governo acaba de cair numa grande contradição. Ao negar aumentos a funcionários públicos que ganhem a ninharia de mil euros por mês e ao anunciar, simultâneamente, que o mau tempo já passou. Não se pode criar a ideia de que o país iniciou a recuperação e, ao mesmo tempo, dizer que não se pode dar um tratamento justo a todos os funcionários públicos que se esforçam. Mesmo que isso signifique, como significaria, pagar mais a quem nem o pouco justifica. Enquanto se dizia que os tempos eram difíceis, vá que não vá. Agora, isto torna-se numa contradição insanável.

O Governo perdeu uma oportunidade única de acrescentar o seu visível esforço de inversão do clima pessimista que grassa no país. Sabemos que as coisas não estão tão brilhantes como nos querem fazer crer. Mas também sabemos que a economia depende muito do clima psicológico. E que algo muito repetido, mesmo que não seja inteiramente verdade, nisso se torna se repetido até à exaustão. O Governo perdeu uma boa oportunidade de tentar agarrar os funcionários públicos para o esforço acrescido que é necessário para tornar verdade o que o Governo diz que é. Para os arrastar, pelo menos os mais dedicados, para a tarefa comum. Nesses termos, é uma tolice rematada punir grande parte dos funcionários públicos. Presumivelmente os melhores e mais necessários. Os que ganham mais. E até acontece que a condição se agrava quando temos notícia de que o Governo permitiu o aumento significativo das retribuições a determinadas categorias de servidores públicos, com cargos de gestão. Estou mesmo de acordo com o argumento usado para o justificar. Se queremos ter serviços públicos de qualidade, temos que os ter bem dirigidos. E, na concorrência que se estabelece pelos bons gestores, há que puxar os cordões à bolsa para contratar os melhores ou para sequer os manter. Mas o argumento, assim colocado, serve a todos os escalões de serviço. Também deveria servir para a grande massa dos funcionários públicos. Dir-se-á que muitos o não merecem. Pela argumentação inicial destas linhas se vê que é, com muita probabilidade, verdade. Mas torna-se numa tremenda injustiça punir os bons para castigar os maus. Uma injustiça que mostra, mais do que qualquer outra coisa, como o privilégio do emprego vitalício é o grande cancro da função pública. E isto será verdade quer os dirigentes sindicais queiram quer não.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 27/1/2004

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