O LABIRINTO
Trinta e seis anos são muito tempo. Meia vida, números redondos. Enquanto assistia ao decurso da sessão da Assembleia da República, comemorativa do aniversário da Revolução, esses trinta e seis anos repassaram diante dos olhos do meu espírito, caleidoscópio de emoções há muito perdidas no esquecimento. No leitor de cêdês, a Dalida cantava baixinho um dos seus maiores sucessos, a sublinhar o que ia ouvindo aos diversos oradores. “Parole, Parole, Parole”. “Palavras, Palavras, Palavras”. Já pelo cair da sessão, o sentimento predominante em mim era de que estava perdido num labirinto. Melhor, estávamos todos perdidos num labirinto. No qual entráramos sem termos sido ouvidos e do qual me parece não há ninguém que nos tire. Dificilmente poderia ter à minha frente uma prova tão provada de que ninguém sabe como sair dele. Aliás, o único que pareceu ter uma direcção foi o Senhor Presidente da República. Se ela é certa ou errada, creio que nenhum de nós o pode saber. Mas, pelo menos ele, tinha uma atitude. Em lugar de ficar especado no sítio, sem saber onde estava, de onde vinha e para onde devia ir, ele mostrou-se decidido a caminhar. Coisa que nenhum dos outros pareceu estar disponível para tal.
Este labirinto, no qual andamos todos às apalpadelas, não difere muito da generalidade dos da sua laia. Começou com uma grande avenida. Radiosa de sol. Ia ser canja. A guerra colonial acabava. Os militares regressavam. O milhão que por lá tinha passado fechava aí a contagem. Os cabedais esmigalhados por conta dos nossos impostos iam ficar disponíveis para matar a fome a tantos pobrezinhos. As prisões iam ficar vazias. Íamos poder chamar nomes a quem quiséssemos, sem medo de ir ocupar um lugar numa delas. O mundo inteiro curvar-se-ia de respeito à nossa passagem, por termos deixado para garras mais afiadas o petróleo e os diamantes que jorravam das colónias. Ocuparíamos, de novo, o nosso respeitável lugar na mesa das nações. E, mais que tudo, íamos ter a possibilidade de, volta e meia, irmos depositar um papelzinho numa urna, dizendo da nossa vontade sobre o governo deste, agora sim, jardim à beira-mar plantado. Era assim a modos de como quem está ao cimo da Avenida da Liberdade, em Lisboa, pela manhã de um radioso dia de sol e vê, à sua frente, um suave caminho pavimentado, sem buracos, a descer e, por isso, a demandar esforço nenhum dos caminheiros, para descer até ao fim do dia. O pior foi, que mal tínhamos dado os primeiros passos, desviaram-nos para os becos do Bairro Alto onde, quem entra, sempre precisa de guia para sair. E, aí, foi onde verdadeiramente começou o labirinto. Um labirinto a que chamaram liberdade. Sobretudo, liberdade de falar, porque, se vamos apreciar as demais liberdades, estamos conversados. E essa foi outra coisa que me ocorreu. A liberdade de falar só aproveita a quem, depois de falar, tem instrumentos para agir. Porque a liberdade de agir é que é importante. Não é a liberdade de falar. A liberdade de falar só alivia o spleen, como diria um bom súbdito de Sua Majestade a Eterna, da Velha Albion. Olhem para mim. Todas as semanas falo aqui do que me vai na alma e para que serve tal? Com toda a honestidade, já não sei se faço isto por hábito ou por desfastio. Porque, no que toca a efeitos do falar, vale muito mais um arroto do Engenheiro Sócrates do que os sete mil caracteres que, mais ponto menos vírgula, debito para o Director deste nosso honrado jornal todas as semanas.
Também duvido que as palavras pronunciadas na Assembleia, neste último Domingo festivo, produzam qualquer efeito. Se excluirmos, talvez, algo que foi dito pelo doutor Aguiar Branco, do PSD. Este ainda teve uma virtude. Ao citar Lenine, cuja morte já ocorreu há quase um século, sublinhou que estávamos mais num mortório do que numa festa de anos. Embora não precisasse de ir tão longe. Há mortos muito mais chegados a nós que também disseram “nós, os de cima, já não podemos”. Nos demais, apenas vimos a preocupação com a sardinha, com a sua sardinha. Por isso o atiçar das brasas que lhes ficavam por debaixo. E lá veio mais uma imagem dos tempos heróicos. Os mais velhos recordam-se. O da luta entre a unicidade e a unidade, protagonizada por dois exércitos, comandados respectivamente pelo doutor Álvaro Cunhal e pelo doutor Mário Soares. Naquele areópago do vinte e cinco de Abril último, unidade era coisa que nem sequer era sugerida. E, todavia, a unicidade estava lá bem presente. Não interessa como o país vai, diziam-me eles todos, desde que consigamos continuar por aqui, todos, a dizer estas baboseiras. Subitamente, fazia-se luz no meu espírito. Tal como a guerra colonial era o problema primeiro do antigo regime, mãe de todos os demais problemas – recordemos como foi esse problema que condicionou e matou a tentativa de liberalização levada a cabo por Marcello Caetano – também agora há um problema primeiro, a condicionar a resolução dos demais problemas do país. Aquele era servido por um exército de militares. Este é servido por um exército de políticos. Aquele levou cerca de um milhão de homens, em doze anos, até às colónias. Este levou já bem o triplo disso até aos degraus do poder político. Aquele comia uma fatia importante do Orçamento. Este come o Orçamento inteiro não tarda nada. Aquele corria riscos de vida pagos por míseras pensões de sangue ou de amparo familiar. Este corre riscos de status, pagos por principescas pensões e mais gordos subsídios.
Desculpem-me os Leitores o desabafo da minha fala de hoje. Não faltará quem nele veja um grito contra a liberdade. Nada de mais errado. Pode haver quem ame a liberdade tanto como eu, mas poucos a amarão mais. Aliás, creio que todos nós detestaríamos ter que usar grilhetas outra vez. Mas liberdade é apenas a outra face de uma moeda que no verso tem estampada a efígie da responsabilidade. E aquilo que nós vemos é o país a ser conduzido, desde há largo tempo, por libertários irresponsáveis. É por isso que, neste labirinto que parece conduzir-nos a sítio nenhum, eu guardo ainda uma secreta esperança. A de que surja por aí um deles que, quanto mais não seja, pela serôdia vontade de agradar ao Povo, nos proponha esforçar-se por reduzir à metade o exército de políticos que nos esfarelam o Orçamento. Se esse alguém surgir – esperançosa luz minúscula em vias de apagar-se – pode contar com o meu esforço para duas coisas muito importantes: para o levar a líder e para usar toda a minha inteligência, por diminuta que seja, para ajudar a sairmos do labirinto.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 19/4/2010
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