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12.1.11

MEMÓRIA

VEM AÍ

Londres é uma cidade com cerca de dez milhões de habitantes. Mais ou menos a população de Portugal inteiro. Londres era, até há menos de um ano atrás, uma das cidades com trânsito mais congestionado do mundo na respectiva zona central. A velocidade média era pequeníssima. De Marble Arch até à City e de Regents Park até ao Tamisa, era quase imp'ossível circular-se nas horas de ponta. Os condutores de automóveis particulares eram, simultâneamente, os causadores e as vítimas de tal situação. As principais. Porque os cidadãos que tinham que utilizar os transportes alternativos - autocarro e metro - também tinham que fazer madrugadas para chegarem aos seus empregos a horas. Uma situação para a qual não se via solução. Tal como acontece hoje em todas as grandes e médias cidades do mundo. Lisboa e Porto incluídas.

Mas aconteceu estar em Londres um Mayor com coragem. Mayor, na Inglaterra, é o equivalente ao nosso Presidente da Câmara. O qual não teve receio de adoptar uma medida inovadora e altamente controversa. Decidiu criar uma nova taxa, a que chamou "taxa de congestionamento", a ser paga por todos os veículos particulares que quisessem demandar a área mais congestionada, a zona central da cidade. Qualquer coisa como mil e quinhentos escudos por dia, em termos absolutos. Naturalmente menos, em termos relativos, dado o mais elevado nível de vida da Inglaterra. E prometeu ele que a receita ocasionada por tal taxa seria integralmente aplicada na remodelação e melhoramento dos trasnportes alternativos à viatura particular. Recordo-me de ter então ouvido comentar, na altura e por aqui, que o homem devia estar doido. Só adoptava uma medida assim quem quisesse perder as próximas eleições.

Se o fenómeno se desse aqui, não seria, seguramente, apenas esse o argumento que se ouviria. Que era apenas mais um meio de sustentar finanças municipais degradadas. Que não havia transportes alternativos suficientes e de qualidade. Que o comércio da baixa ia sofrer com isso. Que a necessidade de levar as crianças à escola não deixava alternativa à viatura particular. Que não havia parques de estacionaemnto suficientes na periferia. E, no fim, era bem provável que não se chegasse a lado nenhum. É, porém, minha impressão que muitos autarcas por aí ficaram na expectativa para ver no que a medida daria. E, agora que está passado praticamente um ano, o balanço feito em Londres, não sendo inteiramente indiscutível, apresenta suficientes razões para que a medida seja encarada favoravelmente por esse mundo fora. Repare só nestes resultados, meu Caro Leitor:

- Houve uma redução de 50.000 automóveis a entrar na zona central de Londres, enquanto 110.000 condutores pagam diariamente a taxa, em média;

- Dos 50.000 que deixaram de entrar no zona central, cerca de 60% mudaram para os transportes públicos; 20% a 30% circundam a zona central para atravessarem a cidade; e 15% a 25% passaram a utilizar automóveis em grupo ou mudaram para a bicicleta;

- As demoras no trânsito foram reduzidas em cerca de 30%;

- A Câmara de Londres estima em cerca de 50 milhões de libras esterlinas anuais os benefícios para a cidade em receita da taxa, viagens mais rápidas, menos acidentes de tráfego e economia no consumo de gasolina;

- Os atrasos dos autocarros dos transportes públicos foram reduzidos em um terço;

- O tempo de viagem médio dos automóveis foi reduzido em cerca de 14%;

- O trânsito em bicicletas aumentou em cerca de 30%.

Tem que se concordar que estes resultados - publicados pela autoridade que superintende nos transportes da cidade - são extremamente animadores. Sendo que, inclusivamente, não estão ali contabilizados os efeitos na poluição atmosférica e sonora da capital da Inglaterra. A primeira grande medida verdadeiramente inovadora deste século XXI, em matéria de trânsito salda-se, do ponto de vista de quem a promoveu, por resultados verdadeiramente revolucionários. Não podemos perder de vista que, desde o aparecimento dos automóveis nas cidades, o seu império foi materialmente atacado pela primeira vez. De algum modo, o Mayor de Londres, ao decidir o que decidiu, interpretou os cidadãos apeados num grande grito colectivo de "QUEREMOS A CIDADE PARA NÓS".

Para que os resultados fossem estes, muito contribuiu uma atitude das autoridades anunciada logo à partida e que tem efectivamente sido posta em prática: a perseguição daqueles que procuram escapar ao pagamento da "taxa de congestionamento". Não tive possibilidade de saber como é feito o controlo. Mas este é tão eficaz que até foi notícia o facto de um habitante de uma cidade a mais de trezentos quilómetros de Londres ter recebido a citação para pagar a "taxa de congestionamento" que não pagara em deslocações a Londres que ele nunca fez. Provavelmente, algum automóvel com matrícula falsa anda a tomar-lhe a vez.

Naturalmente, não há bela sem senão. Há quem esteja a queixar-se da introdução da taxa referida. Desde logo, o comércio da zona central de Londres. O qual acusa a introdução da taxa da visível diminuição de receitas ao longo do último ano. Porventura, terão alguma razão. Embora a autoridade londrina atribua essa redução sobretudo à crise económica que, como por toda a Europa, tem vindo a verificar-se. Mas julgo que é bem discutível se o negócio nos centros das cidades há-de fazer-se à custa de outras contrariedades sociais também dignas de consideração. Será que temos que assistir à progressiva degradação do meio ambiente no qual nos movemos - natural, social, moral e económico - para podermos utilizar o automóvel a nosso gosto?

Londres parece ter encontrado resposta para isso. A qual é um claro não. Mas, ao fazê-lo, parece tê-lo feito com inteligência. Criando novas centralidades. Um processo ainda no início. Tive oportunidade de visitar um desses projectos. Localizado em Canary Wharf, já afastado do centro, o empreendimento é arrojado, com edifícios de cinquenta andares, a fazer lembrar, embora respeitadas as proporções, Nova Iorque. Para ali se estão a deslocar as grandes multinacionais financeiras que, até há bem pouco tempo, se localizavam na City.

Neste quadro, apenas uma ameaça que não é de menosprezar. É que o metropolitano, principal meio de transporte de Londres, de velho, está a romper pelas costuras. Numa só semana, houve três paralizações do metro. As quais afectaram cerca de um milhão de pessoas por dia.

Pois bem. Com os resultados da política da Câmara de Londres, em matéria de tráfego no centro da cidade, que estão à vista, não me custa muito ser bruxo. O pagamento de um novo imposto pelas pessoas que, julgando que o automóvel é um cavalo, o querem levar até à porta de casa ou do emprego, é inevitável. Todas as cidades grandes ou médias, por essa Europa fora, não tardarão a seguir o exemplo. E, diga-se em abono da verdade, nenhum imposto seria mais bem lançado do que este. Se, porventura, tivéssemos cá administradores da coisa pública como Londres tem. Que perseguissem, sem dó nem piedade, aqueles que procurassem evadir-se ao pagamento do imposto. Que criassem novas centralidades para o são e harmonioso desenvolvimento da actividade conómica. Que explicassem, com esta clareza, quais são os resultados das políticas que adoptam. Pois. Se. E eu tenho muitas dúvidas se temos. E tenho a razão histórica pelo meu lado. Basta recordar o modo como nasceu, se desenvolveu e nunca mais morrerá, o imposto de circulação. Em Portugal, quando se pensa em novos impostos, é para resolver apenas um problema: reforçar os meios financeiros ao dispor dos que gerem a coisa pública, os quais depois os administram do modo que todos sabemos.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 28/10/2003

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