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15.4.10

CRÓNICA DA SEMANA (II)

A FRESTA

Nesta apagada e vil tristeza em que vivemos – a acreditar no Poeta, desde há séculos – o que mais tem entristecido a nossa vida é a convicção de que o negrume não terminará tão cedo. É como se estivéssemos encerrados num quarto de janelas fechadas, no qual não penetra um simples raio de luz, dessa luz que alimenta os nossos piores dias, chamada esperança. Esperança em melhores dias. Esperança em que é possível não ter concidadãos nossos para quem comprar mais um pão seja razão para elaborar um orçamento suplementar. Esperança em que a saúde e a justiça de cada um, sendo preocupação de todos, a todos sejam proporcionadas. Esperança em que a formação dos nossos filhos, a sua condução pelos caminhos da infância e da juventude até à meta de serem gente realmente crescida, não seja objecto de mil e uma experiências de indivíduos que se julgam génios. Esperança, enfim, em que ninguém, absolutamente ninguém, sentirá frio ou fome, padecerá de dor ou doença mal cuidadas, sentirá na pele o açoite da injustiça ou da mentira, terá razão para pensar que a Vida não tem amanhãs.

Olhamos para este tempo decorrido desde a Revolução dos Cravos e podemos ver perfeitamente definidos os seguintes períodos:

- O tempo da irracionalidade, de excessivo ajustamento de uma situação que era injusta a conduzir-nos quase à bancarrota, até 1979;
- Um pequeno período de recuperação, subitamente interrompido antes de ter produzido os frutos que prometia, a conduzir-nos novamente a dificuldades notórias, até 1982;
- O período de acerto da trajectória (salvação quase inteiramente devida a um dos homens de grande qualidade que temos em Portugal, o Prof. Ernâni Lopes), até 1985;
- Dez anos de grande progresso, embora um pouco periclitante já nos dois últimos anos, até 1995;
- Um período de mãos rotas, de esbanjamento, até 2002;
- Um período de tentativa fracassada de recuperar novamente, com um pequeno interregno no final, até 2005;
- Um autêntico ambiente de feira, sem qualquer credibilidade, a partir de aí e até agora.

Todos nos recordamos de quem foram os líderes correspondentes a cada um desses períodos. E vale a pena recordá-los para chegar à conclusão de que, fundamentalmente, a nossa maior deficiência é em líderes de qualidade. Por isso, a citada apagada e vil tristeza, desesperançada, em que ultimamente vamos vegetando. Porque se não vêem líderes à altura de uma pilotagem do nosso barco com destino a bom porto. Até que, subitamente neste fim-de-semana, se abriu uma pequena fresta na mais pequena janela fechada do nosso quarto escuro.

Confesso que as minhas esperanças em Pedro Passos Coelho eram (e ainda são, agora, mas expectantes) diminutas. O facto de ser um político de carreira, com pouca ou nenhuma obra conhecida na “vida civil”, me parecia (e ainda parece, mas agora de forma mitigada) fraca recomendação. Claro que outros políticos há, chegados a poleiros bem altos, cuja “vida civil” é uma vergonha. Melhor fora que a não houvessem tido. Não posso, todavia, fechar os ouvidos da inteligência a algo que ouvi recentemente: os políticos deviam ser todos profissionais e só tratarem de política. Uma questão a ficar no espaço das dúvidas. Porque os primeiros passos do jovem Coelho foram de uma sageza verdadeiramente excepcional. Para mim, particularmente três:

- A preocupação extrema com a unidade do seu Partido, a ponto de chamar para o seu lado os seus concorrentes nas últimas eleições partidárias. Só um líder forte, consciente da sua força, se pode dar, na política, a um luxo tal. E ao dar-se esse luxo, ganhou uma legitimidade reforçadíssima para pedir aos Portugueses aquilo que é mais necessário do que pão para a boca: a unidade nacional. Primeiro bravo!
- A atitude que adoptou em relação ao Conselho de Estado e à presença de António Capucho naquele órgão. Tanto quanto se percebeu, o também Presidente de Cascais colocou-lhe o seu lugar à disposição. E Passos Coelho, numa atitude que denota não estar a correr para honrarias, declinou a oferta e pediu a Capucho que ali continuasse. Ganhando legitimidade acrescida para negar, se esse for o seu entendimento racional, lugares dos chamados “tachos” para os “boys” que, seguramente, também tem no seu Partido. Segundo bravo!
- A declaração de que ao PSD incumbe, mais do que a vontade, o dever de ajudar a esclarecer o caso dos submarinos, no qual também está envolvido um Governo do seu próprio Partido. A afirmação de uma disponibilidade para combater a corrupção ao nível das mais altas instâncias do Poder. Ganhando legitimidade para pedir ao seu principal opositor a partir de agora, contas das numerosas trapalhadas em que se tem envolvido e lançando um discurso moralizador. Terceiro bravo!

Três atitudes, três posicionamentos, que vêm no sentido de que o país precisa. Para já, creio que Pedro Passos Coelho ganhou direito ao respeito dos seus correligionários e do país. Um respeito que, no meu caso, resulta do pequeno raio de luz que a fresta entreaberta deixou passar. Claro que só agora as dificuldades das acções concretas, que sempre ficam para além das boas intenções, começam. Veremos, não tarda nada, no que dará o que parece ser uma vontade decidida de atacar os lugares comuns da acção política a que já estamos (tristemente) habituados. E parece não querer perder tempo. O repto que lançou para que a revisão constitucional se faça imediatamente – esta legislatura tem poderes de revisão constitucional – mostra que também soube interpretar correctamente que o País não pode perder tempo. A primeira resposta do Partido Socialista a tal repto, pela boca do seu líder parlamentar, Francisco Assis, veio com a treta do costume, Que “tal não é uma prioridade do PS”. Já estamos habituados a que os políticos usem essa expressão quando não querem fazer o que se mostra necessário. Até parece que têm tão pouca gente que não se podem dar-se ao luxo de desviar a acção dos seus especialistas na matéria para fazer o que é preciso. Péssima reacção vinda de quem devia ser o mais interessado em que as coisas, todas as coisas, andassem para a frente em Portugal.

Uma fresta. Um pequeníssimo raio de luz que nem sequer nos deixa na penumbra. A escuridão ainda persiste. Mas a breve tonalidade cinzenta que o negro assumiu é, seguramente, um sinal positivo. Pela minha parte e enquanto português, estou decidido a ajudar na força hercúlea que se mostra necessária para alargar a fresta, até que seja possível ter as janelas todas do nosso quarto escuro escancaradas. Ainda que por ela se vejam, então, apenas nuvens e o sol tarde em brilhar.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 15/4/2010

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