TRABALHO OU SALÁRIO?
O país vai ter que encarar, a curto prazo, um dilema terrível. Normalmente, numa situação como a presente, em que aumentar rapidamente as exportações é mais necessário do que pão para a boca, agir-se-ia como tantas vezes o fizemos já no período subsequente à revolução de Abril. Desvalorizávamos a moeda, com um triplo efeito favorável sobre a balança de pagamentos e, por isso, sobre a nossa capacidade de crédito no exterior:
- os produtos importados ficariam mais caros, consumir-se-iam menos e importar-se-ia menos, substituindo-se o consumo de produtos importados por produtos nacionais;
- os produtos nacionais ficavam mais baratos ao exterior, exportar-se-iam mais e produzir-se-ia mais;
- um e outro efeito a potenciar a capacidade de emprego da economia nacional, a reduzir os subsídios aos parados e, por essa via, a dar uma ajuda ao orçamento do Estado.
Acontece que não podemos desvalorizar a moeda nas circunstâncias actuais. Usamos a mesma moeda que mais uma mão cheia de países europeus e está-nos vedada a desvalorização unilateral, devendo aguentar a falta de competitividade que a produção nacional apresenta face à produção exterior. Deteriorado o crédito que merecíamos, fica-nos uma única alternativa (dizer “única” em economia é sempre um atrevimento, mas eu atrevo-me) para reequilibrar as coisas. Temos de ganhar competitividade por outro modo que não a desvalorização da moeda, porque esta é impossível (outro atrevimento: dizer “impossível”; é sempre possível). Se o não conseguirmos, o Euro desaparecerá da nossa vista, seja porque somos expulsos da União, seja porque ele pura e simplesmente acaba.
Porque é imperioso o ganho de competitividade é que se vem falando de reduzir os salários. Não é necessária grande abstracção para ver que reduzir os salários é um outro modo de ver a desvalorização da moeda. Só que a medida importa grandes riscos. É uma das consequências de a economia ser uma balança múltipla, com muitos pratos. Por isso, de equilíbrio difícil, podendo-se mesmo afirmar que o equilíbrio perfeito nunca é atingido. É tão só um objectivo permanentemente fugaz, que se vai procurando atingir mexendo nas componentes que repousam em cada prato, tentando com que o fiel se mova o menos possível. Vamos ver de onde vem a perigosidade da redução dos salários.
Com menores salários, as pessoas compram menos. De produtos importados porque estes, tendo o mesmo preço, se confrontam agora com bolsos dos consumidores mais vazios. Cá está a similitude, neste domínio, com a desvalorização da moeda; também acima este efeito era conseguido. Os produtos nacionais, em princípio, não deveriam conhecer redução. Também ficam, agora, mais baratos e o seu preço deveria descer, permitindo que as mesmas quantidades fossem escoadas no mercado. Mas há efeitos perversos possíveis. O primeiro é que o volume monetário das transacções será menor, em caso de redução de salários. E, sendo menor o volume monetário das transacções, o Estado arrecada menos impostos. Isto é, o Orçamento do Estado tende a desequilibrar-se ainda mais, chamando a maior pagamento de impostos por parte de bolsas agora menos recheadas. Com efeitos na redução do consumo, agravando-a. Deixando, cada vez mais, mais gente no desemprego, mais gente a comprar menos, logo menos produção necessária, logo mais desemprego, logo mais subsídios, logo mais desequilíbrio nas contas do Estado, logo mais impostos, etc.. Numa espiral sem fim, de dramáticas consequências. Podendo acontecer – e esta é a segunda perversão possível - que a redução dos salários não tenha reflexos imediatos sobre os preços, baixando-os. Reduzindo, também por esta via, o consumo. Com os mesmos efeitos já analisados imediatamente atrás.
Parece, pois, que temos diante de nós, a quadratura do círculo. Problema perante o qual cruzar os braços é a mais trágica das atitudes. Aí sim, pode ser “impossível” qualquer recuperação até termos atingido patamares de miséria inaceitável. Daí que deva ser colocada aos portugueses a seguinte questão:
- Estão os portugueses dispostos a trabalhar mais pelo mesmo preço, a fim de não verem os seus salários reduzidos?
É que esta é uma alternativa para responder à questão essencial colocada lá mais acima: temos de ganhar competitividade, custe lá o que custar. Com mais trabalho, produz-se mais. Como se ganha o mesmo, o custo da produção é menor. Como o custo é menor, o preço pode ser menor. Se o preço for menor, pode-se comprar mais no interior do país e exportar mais. Se se comprar mais, terá de produzir-se mais. Se tem que produzir-se mais, terão de empregar-se recursos, incluindo o humano, desempregados. E é bom de ver que – não excluindo algumas perversões que este método pode gerar, mas menos arriscadas – que a espiral começa agora a funcionar ao contrário. É como se, tendo uma nora que procurava colher água em cima para a despejar em baixo do poço, lhe invertêssemos o movimento para fazer precisamente o contrário.
Creio que é possível quantificar o efeito de uma atitude deste género, pelo menos teoricamente. Imagine-se que cada um de nós estaria na disposição de, pelo mesmo salário, trabalhar mais uma hora por dia. Cinco horas por semana. Isto é, mais cerca de 12% mais. O efeito directo compreendido nesta medida seria equivalente a desvalorizar os salários em 12%. Mas quase estou seguro de que as pessoas preferirão dar a hora diária de trabalho, em lugar de receberem menos 12% ao fim do mês. E o país – que é o mesmo que dizer “a nossa economia” – ganharia milhões de horas de trabalho semanal gratuito, com os correspondentes reflexos na produção.
Perguntar-me-á o Leitor não especialista: mas como é que, se trabalhar uma hora mais 12% é equivalente a reduzir os salários 12%, os efeitos são diferentes? E a resposta é simples. É que uma coisa é a moeda, outra coisa é a realidade que ela traduz. Um quilo de batatas custa um Euro. Parece que o Euro e o quilo de batatas são a mesma coisa. Mas não são, meu caro Leitor. As batatas come-as e o Euro não. E, enquanto um quilo de batatas será sempre um quilo de batatas, o Euro pode ser hoje um quilo de batatas mas, amanhã, poderá ser mais ou menos do que um quilo de batatas, sem que tenha mudado o tempo de trabalho necessário à produção respectiva. Isto é, reduzir salários é estar a pensar apenas na moeda. Mexer no tempo de trabalho é estar a pensar na realidade das coisas.
Gostaria de ver os portugueses a discutir este fenómeno. Já passou a hora de discutir o Governo. Está morto, cadáver a boiar ao sabor da corrente no rio dos desenganos. A seu tempo, irá embora. Mais premente agora é encontrar soluções.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONOMICA, em 27/5/2010
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