A ÚLTIMA OPORTUNIDADE
Quando ouvi a notícia, tive, quase sem querer, a exclamação da noiva da anedota: “Oh! Não! Não outra vez!”. Por ordem do Governo, o Estado concedia, pela terceira vez, a última oportunidade aos contribuintes relapsos para regularizarem as suas contas com o Fisco. Num diploma legal que deveria ser escrito em inglês. Porque esta língua tem uma expressão que traduz, na perfeição, a situação. “Last, but not the least”. A última oportunidade até agora, mas não a última oportunidade de todas. Por ela, os Contribuintes com dívidas ao Fisco, poderão regularizar, até 31 de Dezembro próximo, as suas contas, sem pagar juros de mora e com coimas reduzidas a uma insignificância.
Para além de pequenas oportunidades, os Contribuintes dispuseram, com esta, de três oportunidades semelhantes. Uma com Eduardo Catroga, Outra com Augusto Mateus. E, agora, outra com Manuela Ferreira Leite. Embora compreendendo porque é que o Estado faz isto, tenho que discordar desta atitude assumida pelo Governo. Por várias razões.
Em primeiro lugar, sempre que o Estado toma uma atitude destas está a dizer, alto e bom som, que não é capaz de cobrar aquilo que lhe devem. De algum modo, o Estado, apesar de todo o seu poder, mostra-se mais incapaz do que uma mercearia de bairro. A qual, com mais trabalho ou menos trabalho, ainda é capaz de ir cobrando os assentos do papel costaneira. Esta afirmação de incapacidade faz mais pelo crescimento das dívidas e da própria evasão fiscal do que qualquer outra razão. Sentindo que o Estado é totalmente incapaz seja de apanhar quem deve pagar-lhe, seja sequer de receber daqueles que confessam dever-lhe, novos contribuintes vão engrossando a legião dos que já não pagam em qualquer circunstância. Mesmo tendo por muito difícil tal cobrança, o Estado nunca devia confessar-se incapaz de o fazer.
Em segundo lugar, é bom de ver que o anúncio da “última oportunidade”, se reiterada, descredibiliza totalmente a afirmação. Seria preferível que o Governo nem sequer se referisse à “última oportunidade”. Se nada dissesse, a medida poderia ser levada à conta de generosidade. Mas ao afirmar que está a conceder uma última oportunidade, depois de já ter sido anunciada esta, por duas vezes, anteriormente, o Estado está a cair no mais profundo ridículo. É óbvio que esta não vai ser nada a última oportunidade. E, sabedor disso, o contribuinte relapso vai pura e simplesmente aguardar a próxima “última oportunidade”. E mesmo o contribuinte que até agora teve as suas contas em dia, vai pensar duas vezes se não é melhor deixar-se atrasar. Não há consequências, pensará ele. E, desde já, todos aqueles que tiverem obrigações em Novembro e Dezembro, vão deixar arrastar o pagamento. Afinal, podem pagar o que devem já depois das festas. Com o que sobrar.
Em terceiro lugar, a publicação, outra vez, de uma medida assim é de uma profunda imoralidade. Porque constitui uma prémio imerecido para os incumpridores. Porque constitui, por oposição, um castigo ainda menos merecido para aqueles que cumprem.
Esta é, porventura, uma das maiores aberrações deste Portugal mediano que vamos vivendo. Parece que ser cumpridor é um anátema. Sistematicamente, assistimos à defesa dos incumpridores, dos “criminosos”. E não é apenas no domínio fiscal. Mas também neste. O crime compensa, em termos fiscais. Ou porque não temos capacidade para perseguir os que se evadem às suas obrigações sociais. Ou porque não somos capazes de fazer os devedores cumprirem. Ou mesmo porque deixamos prescever as dívidas dos que não pagam. E. periodicamente, lá vem mais um benefício para esses. Corremos a legislação e não vemos uma, uma só lei que proteja os cumpridores. Pelo contrário. O fisco parte do princípio que só há incumpridores e, quando um inocente protesta ou recorre, é tratado como mais um incumpridor. Para quando medidas que facilitem a vida àqueles que – mesmo que seja por não terem outro remédio – têm as suas obrigações para com o fisco em dia?
Há que tornar a vida impossível a quem não paga os seus impostos. E facilitar a vida a quem cumpre as suas obrigações. Esta tem que ser a perspectiva do Estado. Enquanto assim não for, estaremos cada vez mais tramados, os que cumprem. E Portugal inteiro por tabela. Neste grande clube que Portugal é, um associado que não tenha as cotas em dia não pode usar as instalações do Clube. Para quando um número apenas de cidadão que, simultâneamente, sirva para bilhete de identidade, para número de contribuinte e para beneficiário da segurança social? Permitindo assim um controlo apertado. Para quando situação fiscal toda regularizada e uma base de dados aonde todos constem e que tão só diga se um cidadão tem as suas contas com o Estado (que somos todos nós) em dia ou não? Fazem-se cartões por tudo e por nada, porque é que não há um cartão do cidadão cumpridor para com o fisco? Com preços mais baratos nos serviços do Estado, com prioridade no obtenção dos documentos oficiais, com presunção de razão em qualquer reclamação? Repito: temos que tornar a vida dos incumpridores num inferno. Querem uma certidão? Demora séculos ou não a têm enquanto não regularizarem a situação com o fisco. Precisam do Bilhete de Identidade? Não há enquanto não regularizarem a sua situação com o Fisco. Uma empresa precisa de instalar uma potência nova no seu sistema elétrico? Não há enquanto não regularizar a sua situação con o Fisco. No limite, um cidadão quer votar? Não pode se não tiver a sua situiação regularizada com o Fisco. Enquanto infernizarmos os cumpridores e facilitarmos a vida dos incumpridores só estaremos a aumentar incomensuravelmente a legião destes últimos. Se infernizarmos a vida dos incumpridores e, por tabela, dos evasores fiscais, então sim, eles teráo tido a sua última oportunidade.
O diploma agora publicado levanta ainda situações de injustiça gritantes, em relação a planos de recuperação anteriores. Vejamos só, para exemplo, a comparação da situação criada com a de um contribuinte que tenha subscrito o Plano Mateus (convencido de que era a sua “última oportunidade”. Durante seis anos, um tal contribuinte pagou religiosamente, e sabe-se lá com que sacrifício, as suas prestações. Em cada uma delas, uma fatia nada dispicienda de juros contabilizados. A uma taxa bastante elevada para a situação actual. Muito bem. Se não tivesse aderido ao Plano Mateus, não teria pago prestações, não teria pago juros e teria agora a oportunidade de pagar, seis anos depois, a sua dívida sem juros e com uma coima mínima. Diz o Secretário de Estado que os subscritores do Plano Mateus podem agora recorrer ao novo regime, até 31 de Dezembro. Mas não é isso que está em causa. Para isso não seria necessária nenhuma lei. O contribuinte já o podia fazer. O que está em causa são os juros que, há seis longos anos, esse contribuinte cumpridor vem a pagar. Ele cumpridor, paga juros. O de agora, o incumpridor, não paga. Não podia haver absurdo maior. Tão grande que admito mesmo que só há uma maneira de o Estado se redimir. Qual é, para os Contribuintes que desejarem arrumar com o pagamento dos seus Planos Mateus, verem deduzida à dívida vincenda, os juros pagos desde o início dos pagamentos. Não fazer pelo menos isto, é a definitiva consagração do incumprimento, da trapaça, da falta de civismo, da justiça, da ética. E, se assim for, o Estado não merece ter um único, um só, contribuinte cumpridor.
Como corolário da última ideia expendida, uma outra que talvez dê origem à última oportunidade. Só haverá realmente uma última oportunidade para aqueles que não cumprem quando os que cumprem se levantarem a uma só voz e disserem que não pagam nem mais um tostão ao fisco enquanto houver leis do jaez da que aqui comentei.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 5/11/2002
1 comentário:
É, será de facto a última oportunidade.
Parabéns pelos detalhes claros e explicitos no artigo.
Saudações Marítimas
José Modesto
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