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10.6.10

FINALMENTE!

Sou um veterano de guerra. Durante trinta e cinco anos, senti, como os meus companheiros de armas, o ostracismo, o insulto do esquecimento. Por isso é que, neste Dia de Portugal de 2010, sinto ter sido reparada a dívida dos meus concidadãos para com uma geração inteira. O primeiro dos Portugueses, Presidente da República, o discurso inaugural da cerimónia solene de comemoração deste dia, proferido pelo Professor António Barreto, e a integração de um destacamento de veteranos no desfile das Forças Armadas deixaram-me tranquilo, por fim. A Pátria recordou-se, finalmente, dos seus heróis anónimos.

Por isso, reproduzo aqui o prólogo que escrevi para o meu livro "Os Heróis e o Medo", publicado em 2003.

***



“Quando os países que se adquirem, como disse, se habituaram a viver com as suas leis e em liberdade, há três maneiras para se manterem: a primeira é destruí-los; a segunda é ir para lá viver pessoalmente; a terceira é deixá-los viver com as suas leis, tributando-os e neles estabelecendo um governo formado por poucos que no-lo mantenham amigo. Porque tendo sido um tal governo criado pelo príncipe, os seus membros sabem muito bem que precisam da amizade e do apoio dele, sem o que não poderiam subsistir. E é evidente que, se não se deseja fazer decair uma cidade habituada a viver livre, o melhor modo de a conservar é através dos seus próprios cidadãos: qualquer outro método produz efeitos contrários… Mas, quando as cidades ou as províncias se habituam a viver sob o domínio de um príncipe, extinguida a antiga estirpe, estando, por um lado, habituadas a obedecer e não tendo, pelo outro, antigos chefes, não se acordam em criar um novo e não sabem viver livres: de modo que são mais lentos em tomar as armas e é possível a um príncipe vencê-las mais facilmente e mantê-las. Mas as Repúblicas têm maior vida, maior ódio e mais desejo de vingança: a lembrança da antiga liberdade não as deixa nem pode deixar em descanso. Eis porque o método mais eficaz para as reduzir é aniquilá-las ou conciliá-las lá vivendo”.

Nicolau Maquiavel – “O Príncipe” – 1513


Quando “ O Príncipe” foi escrito, andavam os Portugueses, nas suas caravelas e naus, a descobrir e a dominar novas terras por esse mundo fora, apenas mal intuídas pelos europeus. Mas de pouco lhes valeu a obra. Quase cinco séculos mais tarde, envolver-se-ão aí, em duras guerras, durante quase década e meia. Não tinha chegado meio milénio para conquistar a alma das gentes encontradas pelas Descobertas. Nessas guerras, sacrificou-se uma geração inteira, em nome de um conceito de Pátria que, por mais defeituoso fosse, continha os ingredientes essenciais de qualquer conceito de Pátria: amor ao território, amor às gentes, amor à língua, amor às tradições, veneração dos antepassados e da sua obra.

Para o esforço desse mais de um milhão de Portugueses passado por África nas guerras coloniais, não importa se o tempo, neste canto da Europa, era de ditadura ou democracia. O que verdadeiramente deve estar em perspectiva é o seu denodado sacrifício. Levado a cabo do jeito sempre usado pelos Portugueses. Com benevolência, com compreensão. Ainda nessas guerras esteve presente o espírito produtor da miscigenação. Os soldados portugueses demandantes de África na segunda metade do Século XX tiveram, com as populações nativas, de um modo geral, um comportamento nada condizente com um ambiente de guerra. Houve mortos, feridos, estropiados, é verdade. De parte a parte. Houve, aqui e além, uma atrocidade, é verdade. De parte a parte. Mas, escoados os primeiros momentos de terror e pânico, quando as atrocidades foram mais visíveis, não foi esse o tom geral da guerra. Esteve sempre presente, pelo menos entre os soldados – hoje ditos de ocupação e, então, de defesa – e as populações civis um clima de fraternidade. Sem prejuízo de uma ou outra excepção - isso mesmo, excepção - apenas os guerrilheiros eram tratados com alguma impiedade, sobretudo durante interrogatórios de guerra. Mas, mesmo assim, sempre procuraram os militares portugueses “recuperar” os prisioneiros. Muitos deles, depois de se terem batido no mato contra os brancos – o racismo, quando existia, tinha dois sentidos – perderam posteriormente a sua vida ou a sua integridade física nas milícias que, ao lado daqueles, combatiam os guerrilheiros da independência.

Este livro, trazido na alma durante vinte anos e escrito na década seguinte, corresponde a uma profunda necessidade espiritual. Surgida particularmente após a revolução de Abril, ponto final das referidas guerras. Foi doloroso – não tanto pelo autor ele próprio, que viveu a guerra mais como observador do que como participante – assistir ao vilipêndio caído sobre os seus antigos camaradas de armas. De repente, pareciam eles ter sido traidores da Pátria, enquanto os heróis chegavam de Argel, de Londres ou de Paris. Os arautos duma justa liberdade cívica decidiram estender, sobre uma geração inteira, um manto de vergonha totalmente injustificado face ao seu comportamento. Não reparando que, com isso, estavam a insultar impiedosamente não apenas os militares expedicionários, mas também as suas famílias, as suas mães, os seus pais, as suas mulheres e, sobretudo, os seus filhos. Com um aflitivo impudor, os fugitivos da guerra não pestanejaram sequer ao insultar a memória dos cerca de dez mil mortos portugueses provocados pela guerra colonial. Mortos aos quais, quer os novos arautos queiram ou não queiram, a Pátria deve o sacrifício supremo das suas vidas. Para humildemente tentar lavar, com o grão de talento possível, essa mancha, também foi escrito este livro.

Mas há mais. Aos homens que fizeram a Guerra Colonial foram pedidos sacrifícios incontáveis. Mal preparados, mal equipados, mal alimentados, mal alojados, com uma logística militar apenas sofrível, esses homens disponibilizaram – para utilizar uma frase feita de bélico sabor – sangue, suor e lágrimas sem conta. Sofreram na pele as dores da metralha e no espírito o pavor do medo. Um medo que sempre sobrelevaram. Que dominaram. Para dele partirem para tantos actos de heroísmo, de fraternidade, de solidariedade. De uma solidariedade não esgotada no companheiro de armas e que, muitas vezes, tinha as populações locais por objecto. Fizeram-no sem esperar agradecimentos. Mas também não esperavam o insulto do labéu, a ofensa do esquecimento. Se foi possível, a Portugal, voltar a África e aos territórios libertados, escassa meia dúzia de anos depois do fim da guerra, a esses homens e ao seu comportamento se fica a dever.

Por tudo isso, para que os filhos e netos dos soldados que fizeram a Guerra Colonial saibam que os seus pais e avós foram heróis autênticos, amantes da Pátria, homens bons preocupados com os seus compatriotas, geralmente sem um átomo de racismo a toldar-lhes o espírito, foi escrito este livro. Que fiquem a saber que eles, os seus pais e avós, tal como tantos outros feitores das mais belas páginas da nossa História, fazem jus à seguinte expressão, sem qualquer pudor, nesta circunstância, roubada aos lugares comuns da ditadura:

“Ditosa Pátria que tais filhos tem”
O autor

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