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22.7.10

CRÓNICA DA SEMANA (II)

A OPORTUNIDADE PERDIDA

Acontece esta legislatura da Assembleia da República ter poderes constitucionais. E acontece que, tendo em conta isto, o Partido Social Democrata foi o primeiro a avançar com uma proposta de alteração da Constituição. Proposta a merecer um completo repúdio de todos os quadrantes políticos, incluindo o seu. Pedro Passos Coelho e Paulo Teixeira Pinto, os dois rostos visíveis da autoria da proposta citada, deram um tiro de canhão no próprio pé. E, todavia, as coisas poderiam ter sido muito diferentes. Esta oportunidade, possível uma vez em cada década, mais ou menos, e surgida num momento de crise profunda do país, tanto no plano económico, como no social, como no político, poderia ter sido o escancarar de uma porta para o futuro – como, alegadamente, pretendia ser, nas próprias palavras do presidente do PSD. Todavia é, apenas, uma oportunidade irremediavelmente perdida. A não ser que um dos pequenos partidos, designadamente o CDS/PP ainda emende a mão do seu putativo aliado de direita e decida ser ele o motor da evolução.

A Constituição de uma nação deve ser, tanto quanto possível, simples, na certeza de que a perfeição reside na simplicidade. O exemplo maior de que assim é está na Constituição dos Estados Unidos, velha já de mais de dois séculos, que continua sendo fundamentalmente a do nascimento da nação, embora sujeita, aqui e ali, a algumas emendas destinadas a adaptá-la aos novos tempos. Junto dela, a nossa parece uma Bíblia. Fruto dos tempos revolucionários, tudo se quis regular, tudo se quis prever. Mas a vida evolui. Não há documento escrito que consiga impedir a modificação das circunstâncias em que decorre a vida de uma nação. E, quer se queira, quer não, na luta entre a evolução do real e a permanência do formal, é sempre esta última a derrotada. Por isso é que andamos sempre às voltas com a alteração da Constituição, a fim de que esta não seja argumento para travar o desenvolvimento da sociedade. E aqui, a proposta do PSD tem algum mérito, na medida em que pretende também extirpar alguma da ganga – muita! – que ainda mora na Constituição, liberalizando ao nível do documento e nos planos económico e social, deixando para a legislação comum a regulamentação daquilo que é acessório e realmente mutável. Não é aí, pois, que está o erro. Mas a proposta quis também mexer na organização política, alargando mandatos e atribuindo de novo ao Presidente da República poderes que ele já teve e oportunamente erradicados. E aí é que a porca torceu o rabo. Do ponto de vista do cidadão comum, com inteira razão.

Uma das alterações últimas que mais apoio mereceu por parte dos cidadãos foi a da redução mandatos consecutivos na esfera autárquica. Resultou esse apoio do reconhecimento de que a eternização dos políticos nas cadeiras do Poder trazia mais prejuízos do que benefícios. Nem em todos os casos tal sucederia, mas essa era a tendência geral. O alargamento de mandatos – do Presidente da República e dos Deputados – embora trazendo, eventualmente, como benefício a redução do número de eleições a que somos chamados, com a correspondente economia, não traria qualquer benefício para a estabilidade política quando colocada esta em confronto com a estabilidade social e iria em sentido contrário do desejo do povo. Fica-se com a impressão de que os dirigentes do PSD, cientes da porta aberta para liderarem o próximo Governo, eventualmente com maioria absoluta e com a perspectiva de disporem em Belém de um Presidente amigo, quiseram, desde já, assegurar um maior espaço de tempo de controlo do Poder.

Constituindo, por isso, a proposta do PSD um acto (quase) falhado, fica-se com um desgosto enorme ao verificar que, afinal, este partido não se revela verdadeiramente reformador, como foi seu timbre nos tempos áureos da ideologia por si perfilhada. Perdendo, ao mesmo tempo, a oportunidade de conseguir um apoio popular que creio verdadeiramente esmagador. Bastava-lhe, para isso, ter proposto cinco alterações constitucionais com um impacto tremendo na credibilização da política e no seguimento da vontade generalizada do povo silencioso que é a base de qualquer vitória ou derrota eleitoral. Que eram estas:

- Instalação dos círculos uninominais, mitigado por uma eleição nacional para dar representatividade às minorias;

- Redução do número de funcionários políticos, sejam eles deputados ou autarcas (de município e de freguesia);

- Propor, como base do calendário eleitoral, o município, desfasando as eleições municipais umas das outras, isto é, cada município com o seu próprio calendário eleitoral;

- No plano autárquico, eleger apenas o presidente do órgão executivo e os elementos das assembleias, dando àquele a possibilidade de constituir equipas executivas coesas e reforçando, simultaneamente os poderes das assembleias municipais;

- Dar representatividade aos votos brancos (com cadeiras vazias), tornando variável o número de deputados ou de autarcas das assembleias municipais ou paroquiais (uma ideia já há muito tempo publicada aqui e retomada agora por uma das cabeças bem pensantes do sistema).

As consequências destas modificações são incalculáveis. Os eleitos passariam a sentir uma responsabilidade pessoal acrescida, pela proximidade aos eleitores. O custo do sistema político seria significativamente reduzido. A luta política seria trasladada do plano nacional para o plano local, com a consequente personalização e credibilização. A administração autárquica tornar-se-ia mais eficaz e responsabilizada. Sobre os políticos estaria suspensa sempre a ameaça do voto branco (hoje, uma atitude perfeitamente inútil, erradamente equiparada ao voto nulo). Desapareceriam as cliques dirigentes, feitas de compadrios e compromissos mais ou menos obscuros. E a corrupção levaria um golpe contundente.

Sei que uma organização política contemplando estas alterações é um sonho irrealizável. Os partidos deixariam de ser a força todo-poderosa da organização política e os seus chefes perderiam a maior parte do seu poder pessoal. Por isso, nenhum deles deseja tais alterações. As clientelas pessoais e partidárias reduzir-se-iam imenso. Nas condições actuais, alguém muito credível na sua região e facilmente elegível para deputado, não consegue tal desiderato se não estiver nas boas graças do chefe do partido. Um caso perfeitamente elucidativo aconteceu nas últimas eleições legislativas, com o próprio Pedro Passos Coelho a ficar fora do parlamento pelas más graças em que estava junto do chefe partidário coevo. Naturalmente, e embora tendo sofrido na pele, ele mesmo, a consequência de tal facto, pretende agora, que é chefe, dispor do mesmo poder do seu antecessor.

Oportunidade perdida. Só voltaremos a ter outra, eventualmente, quando já for muito tarde. Até lá, continuaremos a assistir ao crescimento da desconfiança do povo em quem o governa, primeira condição para que os dirigentes não tenham capacidade mobilizadora nenhuma para responder aos desafios imensos que o nosso país nos coloca actualmente. Um caminhar que desemboca, necessária e fatalmente, numa conclusão irredutível: os partidos, tal como existem e funcionam presentemente, são o cancro da democracia.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 22/7/2010

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