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19.7.10

MEMÓRIA

MEDITANDO

São dez e meia da noite. São horas de enviar as minhas crónicas para os órgãos de comunicação social nos quais escrevo ou falo. O meu Caro Leitor porventura não imagina o que é isto de escrevinhar umas notas destinadas à opinião pública. Há semanas em que não faltam assuntos. Há outras em que o escrevinhador se vê grego para encontrar algo sobre que valha a pena falar. Esta parece ser uma dessas. Passei a maior parte do fim de semana a olhar para o papel em branco. Que é como quem diz. Nestes tempos de técnica, o papel em branco é uma janela duma versão do Word, já velhinha. Sim, velhinha. Porque o Fisco, tributando-me os rendimentos que eventualmente aufira das escrevinhadelas, nem um tostão me desconta na matéria colectável pelo que gasto para as fazer. Por isso, não posso actualizar-me. Paciência. Tenho que me adaptar. E pensar que, em lugar de escrever em papel almaço, tenho que me limitar ao papel costaneira. Depois vão dizer - os responsáveis pela gestão desta coisa que, às vezes, dá pelo nome de Portugal- que eu sou um bota de elástico, que não me modernizo, que não sou competitivo com os escrevinhadores do Times ou do Le Monde. Que hei-de fazer? Cada um tem o Sistema Fiscal que merece. Bom. O melhor, meu Caro Leitor, é enviar-lhe as notas que, a custo escrevi.

Ligo o cabo ao computador. Costumo enviar as crónicas pela Internet. Portanto, deixa lá fazer a ligação. E aqui, sim. Aqui sou moderno. Decidi aderir à Internet Supersónica. Pelo menos, é isso que diz, bem visível, no folheto que me convenceu e que tenho à minha frente. Foi-me enviado pela NETCABO. 8+1 megavantagens, dizem eles, a abrir. Nem um artolas como eu resistiria às promessas que me faziam. E não resisti. Mas foi um gozo, a partir daí. Havia de ver, meu Caro Leitor, o meu ar de superioridade face aos amigos, conhecidos e desconhecidos, quando nos encontramos. Eu sou, pelo menos na Internet, supersónico. Ou melhor, costumo ser. Porque hoje…

C'os diabos! Não consigo a ligação. Olho desconfiado para o meu computador. Aliás, como membro de uma geração desasada destas modernices, olho sempre com desconfiança estas máquinas que parecem saber mais do que eu. Deve ter alguma avaria. Nem por um momento, sequer, imagino que a falha é da NETCABO. Pode lá ser! Então, se eu estou a ver, com estes que a terra há-de comer, eles a dizerem-me, no tal folheto convincente, que "a ligação é permanente e instantânea, até 10x (é, na Net a linguagem é assim, para não consumir bites) mais rápida que a RDIS", como é que hão-de ser eles a falhar?

Desligo e ligo o computador "n" vezes. Se o meu Leitor não sabe o que quer dizer aquele "n", eu traduzo. Quer dizer "vezes sem conta". Aproveito a enormidade de tempo que a maquineta leva a reiniciar as suas funções para dar uma vista de olhos pelos jornais. Dou de caras com o anúncio de que sempre vem aí o pagamento por conta do IRC. E quase me distraio dos problemas em curso na minha parafernália de comunicação. Isto vai dar barraca. Essa coisa do pagamento por conta do IRC. Se não abolirem, depressa, com aquela coisa do pagamento ser equivalente a 1% das vendas, vai haver borrasca de certeza. A malta - a malta são os gestores das pequenas empresas - vai ficar entalada entre duas opções, cada qual a mais difícil. Ou paga e vai assistir à falência da sua empresa. Ou não paga e o Fisco vai-lhe cair em cima. A não ser que venha aí outro perdão fiscal. Que vai ter que ser muito mais suave do que o outro. A Senhora Ministra vai ter que perdoar os juros não já para o pagamento imediato, mas sim para o pagamento em prestações.

Bom. Já tentei as tais "n" vezes a ligação via NETCABO e… nada. Começo a sentir uma vil suspeita. E se o defeito for mesmo da NETCABO?. Quase me envergonho da suspeita. Eles são perfeitos! Diz aqui no meu prospecto! "A melhor imagem e som". Como posso admitir que o meu computador, via NETCABO, esteja cego e surdo? Pelo sim, pelo não, porque a hora vai avançando e o jornal precisa da crónica, lá telefono à NETCABO. Desfaço-me em desculpas pelas vis suspeitas que me atormentam. Quase a medo, servilmente, baixinho para não ofender ouvidos mais sensíveis, pergunto: haverá alguma avaria na NETCABO aqui para os lados de Matosinhos ou é o meu computador que está a gozar comigo? A resposta que recebo é de antologia. Merecia um romance. É de uma prontidão e eficiência verdadeiramente notáveis, modernas, SUPERSÓNICAS:

- Desculpe, mas não tenho essa informação disponível! É que, aqui, só estamos com energia no escritório. Tudo o resto está em baixo!

Desabo do alto da minha convicção de que, quando contratei com a NETCABO, estava a tratar com a última palavra em tecnologia. Que seria impensável ficarem os serviços dependentes de uma vulgar quebra de energia. O silêncio em que caio é altamente comprometedor. Não sei se para mim, se para a NETCABO. Mas suspeito que é essencialmente para mim. Aí para cima chamei a mim próprio "artolas". Não acredite, meu Caro Leitor. Nabo é mesmo o que eu sou. De repente, sinto aquilo que os compradores do "vigésimo" premiado sentem, seguramente. O funcionário que me atende - na sua eficiência, ele disse o seu nome, mas "abananado", até já nem me lembro - sente o peso do silêncio. E decide ter um gesto de boa-vontade.

- Espere aí, que eu vou ver se algum colega por aqui tem essa informação…

Agradeço em voz quase a desaparecer. E, para não cismar na minha inocência totalmente desadequada dos tempos que correm, volto à leitura descomprometida dos jornais. Reparo que o Senhor Presidente da República acaba de nos fazer um pedido irrecusável:

- Peço que respeitemos os agentes políticos…

Estou com azar hoje! A minha confusão aumenta a cada instante. Então não é que o meu pai, que Deus lá tem e que eu respeitava acima de todas as coisas, sempre me disse:

- Rapaz! O respeito não se compra nem se pede! O respeito conquista-se!…

E, subitamente, o Senhor Presidente desfaz, sem laivos de piedade nem respeito, esta ideia inculcada pelo meu pai! Já não é só no meu computador que não acredito. Já não é só na NETCABO que não acredito. Já não é só na justiça fiscal em que não acredito. Já não acredito até no meu pai! Não há dúvida. Hoje é o dia em que as minhas convicções mais profundas são abaladas por um autêntico terramoto. Maldito momento em que me envolvi com a NETCABO! Não é por mais nada. É que se ela tivesse funcionado sadiamente, eu não tinha caído neste turbilhão que me desfaz. Continuaria a ser um céguinho. Continuaria a viver na santa ignorância. Continuaria a acreditar na NETCABO. Continuaria a acreditar na justiça do Sistema Fiscal que temos. Continuaria a acreditar no meu pai. Assim, já não acredito em nada. Preciso, urgentemente, de algo que eleve o meu ego!

O gentil atendedor de chamadas da NETCABO - pelo menos hoje, ele só estava lá só para atender chamadas - volta a linha. E, alvíssaras! Traz uma resposta concreta:

- É verdade! É verdade o que me diz, que há uma avaria para os lados de Matosinhos. Melhor - melhor?!!! - a avaria é no Grande Porto, o qual está quase todo sem acesso à Internet via NETCABO.

Aquele senhor não saberá nunca o bem que me fez! Eu não sei quantos clientes tem a NETCABO no Grande Porto. Mas calculo que sejam uns milhares. E isso, sim, isso levantava o meu ego. O que desconforta não é sermos infelizes. O que desconforta é haver alguém feliz quando somos infelizes. E, entre os milhares de assinantes da NETCABO no Grande Porto, não haverá ninguém feliz a esta hora. Estão todos como eu. A precisar de enviar, com urgência, umas crónicas e a não poder. Bem, a não poder pela NETCABO. Porque - admirável isto, num nabo como eu! - guardei a capacidade de acesso pela "velhinha" linha telefónica. Que se lixe o meu acesso via NETCABO!

Só me fica um pequeno pormenor atravessado na garganta. É que, no fim do mês, a NETCABO vai-me enviar a facturinha pelos serviços prestados sem uma referência, sequer, a este momento. Nem menos um tostão. Já não falo na indemnização que me devia dar pelos custos telefónicos que vou ter que suportar por usar uma via alternativa. Isso, para eles, são amendoins. Agora multipliquem os meus tostões pelos milhares na minha situação e vejam o lucro que a Telecom vai fazer esta noite. Para que o meu sentimento de ser levado no embrulho fique completo, só falta saber se a Telecom é sócia da NETCABO.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 24/6/2003

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