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13.5.10

CRÓNICA DA SEMANA (II)

OS ABENCERRAGES

Perdoe-se-me a longa transcrição. Em Novembro de 2002, eu escrevia neste nosso jornal:

“Habituados a uma vida fácil, nós não quisemos saber de um aviso que, repetidamente, nos foi feito. Dizia-se, nos anos de ouro, que ou aproveitamos a oportunidade que a adesão à Comunidade e à Moeda Única nos oferecia ou iríamos pagar bem caro. De 1985 a 1995, isso aconteceu. Portugal conheceu a sua época de expansão económica e social. Mas sem fazer reformas que eram essenciais. Designadamente as Reformas Administrativa e Fiscal. Andamos – os mais conscientes - anos a fio a reclamar a Reforma Administrativa. Chegou a haver Governos que tinham um Ministro especial para essa coisa. E se nos questionamos que reformas foram feitas, a maior parte de nós não se recordará de outra que não seja a extinção do papel selado. Os anos passaram na mais perfeita vacuidade. No mais agudo deixa-andar. Hoje, deitamos as mãos à cabeça. De nada vale. Já não há tempo. E os funcionários públicos – tal como todos os outros grupos de pressão, haja Deus – não aceitam que se mexa nos privilégios adquiridos. Alguns desses privilégios, mesmo, atribuídos claramente a título transitório. Como, por exemplo, o da reforma antes de atingidos os 60 anos de idade como 36 anos de serviço. O Decreto-Lei que criou esta possibilidade, no seu preâmbulo, especifica, com clareza, que se trata de uma medida transitória, tendente a provocar a redução dos efectivos públicos. Curiosamente, parece estar a fazer mais o efeito pretendido na hora da revogação do que quando foi publicado.

O efeito mais imediato deste fenómeno é o desequilíbrio das contas do Estado. Um défice monumental. Ainda por cima, proibido pela mesma Europa que se farta de mandar para cá dinheiro. É verdade que outros países, bem mais fortes do que nós, padecem do mesmo mal. Só que lá, o desequilíbrio é conjuntural. Uma pequena melhoria da situação económica e o défice desaparece. Enquanto, entre nós, o défice é estrutural. . Não há melhoria económica que nos salve. 15% do Produto Nacional Bruto é absorvido pelo pagamento de salários a cerca de 700.000 servidores públicos. E não há forma de reduzir isto a não ser através da redução de salários – o que é impossível – ou do despedimento dos funcionários públicos – o que estes não aceitam. Pobre ilusão! Não há modo de enganar a realidade. Não aceitando as reformas necessárias, agora, os Portugueses estão a cavar o buraco onde vão cair, inexoravelmente.

Gostaria de terminar estas minhas notas de hoje com palavras de esperança. Claro que há sempre lugar para ela. Mesmo como cadáver, Portugal voltará à superfície. Esperemos que não seja como cadáver. Mas de algo já ninguém nos livra. Da sede e da fome a que os náufragos estão sujeitos. E é de naufrágio que poderemos estar a falar bem em breve. Por nossa culpa. Por nossa exclusiva culpa. Uma culpa que ainda nos custa reconhecer. Como bem o dizem os esforços dos diferentes grupos de pressão para manterem os seus privilégios. Novamente, ilusão. Que acabará por nos atirar uns contra os outros, precisamente quando deveríamos estar mais unidos. A próxima adesão de mais dez países à Comunidade Europeia, o consequente desvio dos fundos desta para esses novos países - tal como já vieram para Portugal - e as condições mais favoráveis que esses países oferecem – tal como já aconteceu com Portugal – encarregar-se-ão de mostrar que, se o navio for ao fundo, ninguém escapará. Nem mesmo os ratos.”
***
Oito anos e quatro governos passados, uma dolorosa interrogação está incrustada no meu espírito. Se eu, um Zé Ninguém, via então para onde íamos, que foi feito, durante todo este tempo, pelas gloriosas cabeças que tivemos a governar-nos? Olho todo este tempo, ao jeito de um filme em câmara rápida, e uma ideia se sobrepõe a todas as outras. Foram anos de uma corrupção inaudita. Portugal, a patinhar na lama já então, afundou-se entretanto no lodaçal. Esta a razão porque eu me sorrio quando vejo estes abencerrages, tão poderosos quanto os de Granada, a dizerem que só temos crise porque fomos contagiados por gregos e troianos. É verdade que há uma crise internacional. Mas tivéssemos nós sido bem governados e, tal como os mais sábios, estaríamos agora em franca recuperação. Que ninguém se iluda! O grosso da nossa crise deve-se a uma governação ruinosa, de fidalgos da casa mourisca, espalhafatoso exemplo do mais puro amadorismo, para não lhe chamar outra coisa. A globalização não trouxe só novos mercados consigo. Trouxe também esta dependência que faz com que, se não sabemos governar-nos, se descarrilamos da boa via, aqueles que se governam bem obrigam-nos a entrar nos carris. É isso que está a acontecer, que vai acontecer ainda pior, reduzindo-nos a um nível de mal-estar como eventualmente nunca tivemos depois da revolução dos cravos.
Não obstante o que digo, há mais responsáveis. É provável que assistamos, agora, a momentos de grave agitação social. Com muitos de nós na rua, protestar contra o actual governo. Esquecendo-nos de que a primeira e mais aguda responsabilidade nos pertence. É este o preço enorme de viver em democracia. A obrigação de assumir a responsabilidade. Responsabilidade que mais não é do que a outra face de uma única moeda onde, no anverso, está estampada a imagem da liberdade. Ninguém nos governou a não ser por nossa escolha. Não podemos queixar-nos senão das nossas más escolhas. É bom não esquecermos isto quando tivermos vontade de reclamar na rua e nos saltar à garganta o grito de protesto. Tivemos a liberdade de punir os maus governantes e colocar no poder os que eram bons. Embarcámos em naves de demagogia – por exemplo, António Guterres ou Mário Soares – e vamos pagar o bilhete da viagem. Caríssimo, claro. Porque a viagem foi, até aqui, em paquete de luxo. Quando vejo hoje que fomos capazes de colocar a governar-nos uma incompetência palavrosa, como é esse Primeiro-Ministro de meia tigela que temos, com uma biografia a mostrar, até aos mais míopes, uma incompetência monstruosa, fico estarrecido. Com pilotos assim, não há paquete, por mais sólido que seja, que resista a uma pequena vaga.
Claro que, como eu dizia já em 2002, Portugal vai sair desta embrulhada em que, mais por vontade própria do que por influência alheia, se meteu. Sempre acontece tal. Mas é visível que vão passar muitos anos antes que tal suceda. Já não será para o meu tempo. Nem para grande parte dos que me estão a ler. E esse será o crime mais nefando que ficará na História, como sinal desta época. É que a sagrada Liberdade que nos foi dada por uma revolução necessária, foi talhada sobre os sonhos de uma geração inteira. Sonhos de que restam, hoje, apenas as aparas arrancadas à bruta pelo cinzel escultor. Saibamos, pelo menos, transmitir às gerações mais novas os ensinamentos que temos a obrigação de colher dos faustos dolorosos deste nosso tempo.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 13/5/2010

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