Tenho um enorme respeito pela dor dos outros. Designadamente pela dor de quem perde um ente querido. Seja ele um pobre da rua, seja um grande senhor. Na dor, somos todos iguais. Não há classes, não há privilégios, não há riquezas. Muito especialmente na dor da morte. Mas entendo que a dor é algo de íntimo e pessoal. Não é para ser apregoada em parangonas públicas. Não é para ser afixada em cartazes. Não é para ser espectáculo público. Quando passa a espectáculo público, a dor é apenas folclore. A verdadeira dor é, nesse caso, espezinhada, violada, vilipendiada.
Vem isto a propósito do recente falecimento do pai do Presidente da Câmara de Matosinhos, Narciso Miranda. Uma perda que, seguramente, ele sentiu agudamente no fundo da sua alma. A perda de um pai ou de uma mãe é - falo com conhecimento de causa - um espinho agudo espetado onde mais dói, um espinho de que dificilmente nos libertamos no resto da vida. Por isso, merecedora do respeito silencioso de todos nós.
Mas o acontecimento infausto deu aso, em Matosinhos, a um inaudito comportamento de agentes públicos que importa não esquecer, que importa punir exemplarmente. A Câmara respectiva, as Juntas de Freguesia do município e empresas municipais, todas dependentes do enlutado, levaram a cabo um autêntico folclore de anúncios na comunicação social que custou ao erário público, seguramente, muito mais de cinquenta mil euros, isto é, mais de dez mil contos! Para bem percebermos do que estamos a falar, basta termos presente que um anúncio já de grande relevo num dos principais órgãos de comunicação social do país custará qualquer coisa como cem contos. Gastou-se cem vezes mais! Um forrobodó com os dinheiros públicos, organizado e gerido por quem não tem a mínima noção da responsabilidade pública, por quem pensa que o dinheiro que administra é seu. Ainda por cima, numa atitude pouco inteligente, que seria ridícula se não fosse de uma gravidade extrema, a roçar as fronteiras do crime público. Páginas e páginas de jornais e jornais com anúncios que as encheram, numa ladaínha incrívelmente grande, que nem reis ou presidentes da república fazem, tentaram transformar a dor legítima numa enorme campanha de promoção político-pessoal, tendo por pano de fundo a escaramuça existente tendo em vista as próximas eleições autárquicas. Aceitando que não foi Narciso Miranda a ordenar a colocação de tais anúncios, mergulhado como estava na sua dor filial, o acontecido leva-me a pensar que há muita gente apavorada na sua equipa. O que nos conduz, por associação de ideias, a pensamentos esquisitos. O que loevará certas pessoas a terem tanto medo que aconteça o mais natural, que é o de alguém, no Poder há décadas, dar o seu lugar a gente mais nova, com novas ideias, com projectos renovados? É um medo que não entendo e, por isso, a minha opinião de que, ao agirem como agiram, aqueles que ordenaram o folclore dos anúncios espezinharam a dor do Presidente.
O acontecido é, além do mais, um múltiplo insulto. Insulto ao estado em que se encontram as finanças públicas. Quando todos nós sofremos na pele os esforços de economia financeira do Estado e, inclusivamente, nos revoltamos contra isso, vemos responsáveis públicos desbaratarem os recursos deste modo irresponsável. Insulto aos funcionários públicos que, há anos, não vêem os seus vencimentos corrigidos, sob o argumento de que não há dinheiro. Quando em Matosinhos ele parece ser tão abundante que pode desperdiçar-se estupidamente. Insulto aos que passam fome e aos que não têm uma casa decente para habitar. O dinheiro ora esbanjado dava para fazer duas casas para pobres e matar a fome a milhares de pessoas. Insulto ao Contribuinte. Que vê os seus impostos serem desperdiçados deste modo inconsciente, inconsequente, com meros objectivos de propaganda político-pessoal.
Há uma pergunta que, necessariamente, fica no ar. E agora? Isto não pode ficar assim, impune. Quando um vereador da autarquia diz aos órgãos de comunicação social que a responsabilidade dos anúncios pertence ao Gabinete do Presidente, atira o fardo inteirinho para cima de Narciso Miranda. Porque este é, naturalmente, responsável por todos os actos do seu Gabinete. A não ser que o seu Gabinete tenha excedido as suas competências. Situação em que, inexoravelmente, Narciso Miranda tem que despedir os funcionários que exorbitaram as suas funções e geriram o dinheiro de todos nós deste modo inaudito, inaceitável, execrável. Muito pior seria, naturalmente, Narciso Miranda não fazer nada e aceitar os factos consumados. Porque isso o tornaria cúmplice, a custas próprias, de um crime de lesa património público. Aguardemos para ver.
Estranho o comportamento da oposição municipal. Que nem toca no assunto. Estranho mas compreensível. Guardando, seguramente este argumento para a campanha eleitoral autárquica. Sabendo que ele pagará, aí, dividendos muito maiores. Sabendo que a única hipótese que tem de ganhar as eleições em Matosinhos é ter Narciso Miranda por adversário e não qualquer outro. Porque está desgastado, porque já leva quase tanto tempo de poder como Salazar, porque tem vindo a perder o apoio com que em tempos contou e porque aqueles que o rodeiam cometem erros sobre erros, como é o caso deste autêntico folclore pago por todos nós.
O episódio tem ainda um outro episódio a merecer correcção. Eu próprio ouvi Narciso Miranda dizer, publicamente, que o Senhor Presidente da República lhe enviou flores, na circunstância. Creio que há uma imprecisão, Provavelmente, quem lhe enviou flores foi o seu amigo Jorge Sampaio, o que está perfeitamente bem. Mas a verdade é que ao dizer do modo que disse, o autarca deixa no espírito de quem ouve a noção de que, para o Senhor Presidente da República, há cidadãos de primeira, a merecer flores no funeral, como seria o caso do pai do Presidente da Câmara de Matosinhos, e cidadãos de segunda, a não merecerem flores, como seria o caso de todos os outros, nesse caso pagadores de impostos que serviriam à compra de flores para os de primeira categoria. Gravidade sobre gravidade. Como disse o Bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. Miguel Júdice, a propósito dos acontecimentos aqui comentados, já nada admira neste Portugal em bolandas.
Crónica INSULTO - Magalhães Pinto - MATOSINHOS HOJE - 21/3/2004
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