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25.12.08

O CICLISTA NATALÍCIO

O CICLISTA NATALÍCIO

Já lá vai há tanto tempo e, ainda assim, a impressão permanece, as recordações afluem e a alma enternece-se. O primeiro Natal de que me recordo. Na altura, não sabia. Tinha apenas cinco anos. Mas sei hoje que a Segunda Guerra Mundial tinha terminado havia pouco. Ainda era tempo de racionamento dos géneros alimentícios. Portugal não entrara na guerra mas, ainda assim, o tempo não era de fartura. Nunca era e nunca foi, ainda por durante muito tempo. Uma das coisas de que me recordo é das senhas do racionamento. Uns papéis a fazer lembrar esses que os cobradores das agremiações trazem para fazer a cobrança da quota mensal. Hoje já perfurados, para um fácil rasgar, mas, na altura, em papel plano que era cortado por uma tesoura sempre à mão.

A minha família era pobre. A mãe, empregada no Hospital de Santo António. O pai, operário fabricador de massas alimentícias na Manutenção Militar. E a fartura não havia, portanto. O dia da véspera de Natal foi, então, estranho. A mãe não foi trabalhar. Deve ter arranjado as folgas para estar em casa nesse dia. E, a partir do início da tarde, não saiu mais da cozinha. Com a tia como ajudante. E, quando o bater das claras ou o descascar dos ovos permitia, lá vinha a lengalenga da mãe:

- Ó Toninho! Ou te portas bem ou Menino Jesus não te dá prenda hoje!
- E quem é o Menino Jesus, ó mãe?

Era uma pergunta embaraçosa. Criança de cinco anos não entende metafísicas. Mas o aviso da mãe regressava ao meu espírito quando uma asneira ameaçava. E fui pelo dia fora com o Menino Jesus na minha companhia. Durante as batatas, durante o bacalhau, durante as couves e, depois, os bolos de bolina, os mexidos (que depois vim a saber chamarem-se também formigos) e o creme queimado, que mais não havia. Volta e meia, perguntava:

- Quando é que vem o Menino Jesus, mãe?
- Só vem de noite, se vier, se não fizeste asneiras. Desce pela chaminé e deixa-te um brinquedo no sapatinho, em cima do fogão.

A partir daí só queria ir dormir. E fui, que criança não aguenta muito, depois de ir com o pai colocar um sapatito meu, já meio esmurrado, no fogão. Pela manhã, foi o pai que veio acordar-me. E a levar-me à cozinha. Deviam estar a precisar de acender o fogão, sei hoje. E lá estava. Reluzente, em cima do meu sapato, um daqueles ciclistas de madeira, com as pernas presas à roda, numa espécie de pedais, com uma roda gigantesca e um cabo. Que engraçado que era. A gente rodava aquilo no chão e o ciclista fartava-se de pedalar. Durante alguns dias, não havia lugar para onde fosse que não levasse o meu ciclista pela mão.

Curioso. Nem então, nem durante muitos anos, ouvi falar de uma coisa chamada Pai Natal. E não tive montes de brinquedos, como hoje quase a maioria das crianças tem. Só tive um. Mas a recordação que guardo desse meu “primeiro” Natal é a de que foi feliz e emocionante.

Magalhães Pinto

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