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2.8.10

MEMÓRIA

NOTAS DE FÉRIAS

1. Tarde piaram!

Há um vendaval de artigos de opinião a censurar algo que, a meu ver, merece ser censurado. É que, no mesmo dia em que foi cortada a bonificação ao crédito jovem para aquisição de casa própria, entrou em vigor uma bonificação para o crédito a usar pelos clubes de futebol na construção de estádios para o Euro/2004.

Tem razão de ser, a censura. É profundamente imoral aquilo a que assistimos. E para que não ficassem dúvidas nenhumas sobre isso, até se deu a profunda ironia de os dois factos acontecerem simultâneamente. Aos jovens, poucas hipóteses restam para organizarem a sua vida além de comprar casa. Nem sequer é relevante que muito desse crédito tenha sido utilizado por adultos, os quais adquiriram casa em nome de jovens. Esses deveriam ser apanhados e devolver tudo o que, ilegitimamente, levaram dos nossos impostos. Porém, ficam todos os outros, os utilizadores legítimos, para dizer do grande alcance social da medida agora terminada. Pelos vistos, para apoiar (ainda mais) o futebol.

Vem o Governo dizer que, em compensação, vai aumentar o subsídio para renda de casas. O que me deixa sem perceber. Se o Estado vai aumentar o subsídio para as rendas, porque é que terminou com o subsídio para a compra de casa? Há mistérios que são quase insondáveis.

Mas o que eu quero realmente colocar em destaque nesta nota é outra coisa. O barulho é, agora, ensurdecedor. O que cheira a hipocrisia. O que é outro mistério. As bonificações para os clubes de futebol foram concedidas pelo Governo socialista que caiu o ano passado. E foram assumidas contratualmente. Estão, de pedra e cal, incluídas nos contratos celebrados pelos clubes de futebol com o Estado. Não há outro remédio senão cumprir. Todavia, sabemos que insultam a moral e a ética. Pois é. Só que o barulho contra isto deveria ter sido feito quando a megalomania de meia dúzia encontrou cobertura nos governantes de então. Quando foi aprovado o apoio financeiro do Estado à realização do Euro/2004, eu fui das raríssimas vozes a levantarem-se contra o facto. Nessa altura, a maioria dos fazedores de opinião embandeirou em arco ou calou-se. Agora, é caso para dizer que tarde piaram. Melhor fora que ficassem calados.

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2. Até quando?

Com uma frequência só ultrapassada pelos mortos na estrada, continuam a morrer os nossos trabalhadores nas obras de construção. Para além da tragédia que é a morte em si, tais casos despoletam tragédias porventura ainda maiores. As das respectivas famílias. As quais ficam ao deus dará, geralmente com nenhuns ou parcos rendimentos de subsistência, por ter faltado, subitamente, o rendimento do trabalho do chefe da família. E, para que a tragédia atinja a sua dimensão mais profunda, até acontece que as indemnizações a que essas famílias teriam direito não são pagas na hora. São constantes as notícias a dar conta de patrões com seguros insuficientes, de companhias de seguro a eximirem-se ao pagamento com base em mil e uma argumentações, de processos em tribunal anos a fio sem conhecerem decisão.

Com o devido respeito pelos direitos de cada um, entendo que a Lei devia proteger os mais fracos. São esses que sentem na pele as consequências mais duras das tragédias. E reforço este pensamento com a ideia de que, neste caso, os mais fracos são também os únicos cuja razão é incontestável. Trabalhar tem riscos objectivos e é o empregador quem assume as consequências desses riscos em caso de verificação. Para sua protecção, fazem-se substituir pelas companhias de seguros. É admissível, em alguns casos, que as responsabilidades não sejam transferíveis. Por exemplo, por grave negligência do empregador ou do próprio acidentado. Mas, em defesa das maiores vítimas do sinistro eventualmente acontecido, a Lei devia PRESSUPOR uma responsabilidade subjectiva. Ou da entidade empregadora ou, no caso da existência de seguros, da empresa seguradora. E, consequentemente, a Lei devia IMPOR o pagamento imediato – no máximo de uma semana ou duas - das indemnizações, deixando para as argumentações ou para o Tribunal, o derimir de eventuais razões entre as duas partes mais fortes, o empregador e a companhia de seguros. Uma indemnização que venha cinco ou dez anos decorridos sobre o acidente não reparará nada. Toda a desgraça estará consumada nas suas piores consequências. Terá então assumido a sua dimensão mais trágica e injusta.

Acho que a Nova Lei do Trabalho devia meter-se nesta área. Pode fazer o favor de ouvir, Senhor Ministro Bagão Félix? A sua coragem não pode ficar pela metade. E espero que os sindicatos não deixem passar isto em claro.

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3. As baixas e as altas

Há demasiada gente sem trabalhar no país. É extremamente preocupante o resultado da averiguação levada a cabo, na Câmara Municipal do Porto, por iniciativa de Rui Rio. Por aí, ficámos a saber que há gente a ganhar o seu salário sem fazer nada. É a política do rendimento máximo, aplicada pelos próprios dela beneficiários, com a complacência de uma Lei demasiadamente permissiva. Volto a afirmar, para que não nos esqueçamos: toda a gente tem direito ao trabalho e ninguém tem direito a um emprego. A situação privilegiada dos funcionários públicos e administrativos é escandalosa. Com a agravante de muitos nem sequer saberem estimar o privilégio.

Com base nas averiguações da Câmara do Porto, e dado o conhecimento que se tem da generalidade do fenómeno, pode estimar-se dos muitos milhões de contos que se evadirão, activamente e ilegitimamente, dos cofres do Estado. Só por ter trazido o assunto à luz do dia, o Dr. Rui Rio merece o aplauso não apenas do Porto mas também de todo o país.

O fenómeno traz à superfície um outro, de não menor gravidade. A combinação da consciência profissional dos médicos com a sua consciência cívica. Um médico não pode, ao conceder uma baixa por doença, deixar de pensar que essa baixa vai ser paga pelos contribuintes portugueses. Consta que os médicos são uma das classes que mais se evade ao pagamento dos seus tributos profissionais. Talvez seja por isso que tantas baixas são concedidas de ânimo leve. Muitos médicos não pagam a sua quota parte no custo das baixas que concedem. Pagassem eles e talvez outro galo cantasse.

Sintomático, neste domínio, o que está a acontecer no Hospital Amadora/Sintra, onde estão a ser dadas gratificações aos médicos em função das altas que determinam. Resultado: aquele hospital começa a ser conhecido pelo hospital das altas. Corre o risco de ficar sem clientela. Mas este facto deixa-me perplexo. Porque raio há-de gratificar-se um médico só porque determina uma alta? Acho mesmo insultuoso para aquela classe profissional. O gesto da gratificação pressupõe que o médico se está nas tintas para a saúde do utente e quer mas é ganhar o dele.

E já que estamos a falar de médicos, traga-se à superfície o escândalo que é dizer-se que palavra de médico é lei. Que razões determinam o privilégio de uma classe de se colocar acima da Lei? Se é assim, e enquanto economista, posso determinar que se confisquem as riquezas dos médicos por necessárias à sobrevivência da Pátria. Sem esperar deles contestação. Porque de finanças percebo eu. E ao que eu percebo deve conceder-se privilégio igual ao concedido ao que os médicos percebem.

Esperaria uma gritaria infernal das Confederações Sindicais contra as gratificações aos médicos pela concessão de altas. Qual nada! Esperaria vê-las sair a terreiro a defender o Presidente da Câmara do Porto. Qual nada! O problema destas não parece ser moral. Parece ser político-partidário. Acho que as Centrais Sindicais estão a cometer um erro monumental ao lutarem por privilégios dos trabalhadores sem, igualmente, lutarem pela responsabilização destes. Podem conseguir o apoio de meia dúzia de milhar de trabalhadores. Uns aqui, outros ali, consoante estes ou aqueles se vão sentindo ameaçados pela moralização. Mas consituir-se-ão cada vez menos como uma voz assente na força da razão.

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Assim se vê o trabalho ingente a fazer pela moralização do País. Moralização que, a não surgir, nos fará sucumbir numa curva qualquer aí para a frente.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 19/8/2002

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