O DIREITO DAS GERAÇÕES
É um gesto trivial. Um olhar distraído sobre a realidade na qual nos movemos. Subitamente, a percepção da quantidade de trabalho realizado que nos cerca. Os edifícios, as ruas, os jardins, as canalizações enterradas no solo, o mobiliário urbano, o porto de mar, os guindastes, os navios. Ir mais longe. A paisagem afeiçoada. Os diques nos rios. Olhe-se o Douro. O alcantilado ao longo das margens, séculos de trabalho acumulado e guardado. Estamos rodeados de uma riqueza inimaginável, incontável, em termos humanos ilimitada. Tanta, que não há guerra que consiga destrui-la a toda. Pelo menos, até hoje. Trabalho de gerações e gerações, acumulado para nosso disfrute.
Bom. Esta a face poética. Mas tem outra face. Esse trabalho acumulado todo que nos rodeia foi feito, na sua maior parte, pelas gerações que nos antecederam. É, por assim dizer, o PIB não consumido por quem o produziu. É a prova maior de um conceito em que muitas vezes falamos, sem bem nos apercebermos do que ele significa: a solidariedade inter-geracional. Isto é, as gerações que nos antecederam recusaram consumir tudo o que produziram para que nós, os seus vindouros, pudéssemos gozar o produzido por elas.
Não é muito a atitude presente. Estamos em plena sociedade do consumo. Vamos pedir dinheiro ao banco para consumir. Quando o fazemos, estamos a consumir ou trabalho das gerações que nos antecederam – guardado sob a forma de dinheiro, nos bancos – ou trabalho das gerações que se nos sucederão, ou trabalho da nossa geração, feito por aqueles que não consomem tudo o que produzem. Se nos fizermos solidários com a geração a que pertencemos por imperativo de calendário, restam as duas outras alternativas. E coloca-se, do ponto de vista das gerações, o problema de saber se tal é justo e, sendo-o, em que medida. O que deve, naturalmente, ser resolvido no plano moral. Do ponto de vista puramente técnico, não há nada que impeça que o consumo do trabalho produzido por uma geração tenha que ser igual, maior ou menor do que a sua produção.
Creio que a sabedoria popular começa pos nos oferecer uma resposta. É comum ouvirmos dizer algo como “quero deixar aos meus filhos, se não mais, pelo menos o que os meus pais me deixaram”. Uma frase que corresponde a um duplo respeito. Pela geração passada, com a certeza de que não devemos consumir o que ela nos deixou. Pela geração futura, que deve ter pelo menos a abundância que nós encontramos ao nascer. A consciência geral das sociedades vai – creio poder dizê-lo sem desmentido – no sentido de que não temos o direito de roubar às gerações futuras aquilo que não foi produzido por nós. Portanto, parece irrefutável que pensamos, todos de um modo geral, não dever consumir mais do que produzimos.
Sendo assim, restam os dois outros termos do raciocínio. Podemos nós, moralmente, consumir pelo menos o que produzimos? Ou temos a obrigação de produzir algo menos do que produzimos, “para deixar aos filhos mais do que nos deixaram a nós”, como o dito popular acima referido parece inculcar? E, no caso de devermos consumir menos do que produzimos, quanto menos será legítimo, exigível e admissível?
É um problema curioso, este. Que é, mais ou menos, colocar a questão deste modo: que direito têm as gerações vindouras de viver melhor do que a minha À CUSTA DA MINHA? Ou seja, tomando por certo que a felicidade – que os especialistas chamam bem-estar - é função dos bens e serviços que temos à nossa disposição, não temos nós, todos, filhos do mesmo deus, direito a uma fatia de felicidade equilibrada com as demais gerações?
Não se pense que é uma questão teórica. Das respostas que dermos, assim uma qualquer política de governação sairá mais ou menos legitimada pela moral. Quando dizemos que é necessário evitar a ruptura da Segurança Social e, por força dessa necessidade, definimos para a actual geração sacrifícios adicionais, estamos no âmago deste problema. Por um lado, são-nos pedidos sacrifícios porque gerações anteriores consumiram demasiado em relação ao que produzimos. E, por outro lado, entendemos que as gerações vindouras deverão ter, pelo menos, o que nós tivermos. Do mesmo modo, é em função da consciência colectiva em redor deste problema que se há-de coonestar a política fiscal do Governo – pesada, em termos de sacrifício, neste momento – e entendê-la como legítima ou não. É, finalmente, em função das respostas que encontrarmos que havemos de ver quem tem razão, se Marques Mendes ao pedir que os impostos baixem ou o Governo ao dizer que não deve fazê-lo.
Eu sei que há relações com Bruxelas, que há o desequilíbrio das Contas Públicas, eu sei isso tudo. E que isso tudo não é pouco como argumento justificativo. Mas também sei que o Homem é capaz de arranjar argumentos justificativos para tudo. Especialmente em política. Mas, também em política, tais argumentos apenas serão válidos se corresponderem a um sentimento colectivo sério, descomprometido, que vá no mesmo sentido. E colocar as questões que eu coloco aqui é procurar fazer com que tenhamos um sentimento colectivo àcerca do problema, seja qual seja esse sentimento.
Rememoremos então o que achamos até aqui:
- Não devemos consumir tudo o que produzimos;
- Devemos, mesmo, deixar para as gerações futuras alguma parte do que produzimos;
- Mas não é justo que sejamos excessivamente sacrificados para que as gerações futuras sejam excessivamente beneficiadas.
Como se há-de medir, então, o que, da nossa produção, devemos deixar para o futuro?
Temos vindo a assistir, recentemente, a uma acalorada discussão pública, que teve, até agora, mais ou menos os seguintes termos:
- Marques Mendes, o presidente do Partido Social-Democrata (PSD), propôs que fossem baixados os nossos impostos;
- O Secretário de Estado do Orçamento do actual Governo admitiu que os impostos talvez estivessem mais elevados do que era necessário;
- A antiga Ministra das Finanças, Manuela Ferreira Leite, do PSD, afirmou publicamente que "era uma irresponsabilidade pedir neste momento a redução dos nossos impostos";
- A partir daí, uma série de membros do Governo e do Partido Socialista passaram a chamar irresponsável ao presidente do PSD;
- Entretanto, o antigo Ministro das Finanças, Miguel Cadilhe, do PSD também, afirmou que havia espaço para baixar os impostos neste momento;
- E, finalmente, o Primeiro-Ministro veio a público afirmar três coisas: que o défice do orçamento teria sido, em 2006, menor do que o previsto (o que significa que se cobraram impostos mais do que exigiam os nossos compromissos com Bruxelas); que a redução de impostos chegaria antes do que o seu Governo havia prometido; e que o presidente do PSD era um oportunista e irresponsável.
Parece, de tudo isto, poder concluir-se uma coisa segura: que, efectivamente estamos a pagar mais impostos do que é necessário, não apenas en função da solidariedade inter-geracional, mas também para cumprir os nossos compromissos com a Comunidade.
Pessoalmente, até nem acharia mal que fossem usados os meios excedentários em novos investimentos públicos. O que corresponderia à necessidade moral que sinto em querer para os vindouros algo melhor do que eu tive. Mas haveria de ser em investimentos que fossem realmente úteis e reprodutivos. E não em investimentos sumptuários de duvidosa utilidade, como está a ser o caso do aeroporto da OTA. Porque, no quadro do meu raciocínio, a utilidade que as gerações vindouras vão retirar do meu sacrifício é incrivelmente desproporcionada, para o lado negativo. Ora, porque o Governo insiste em realizar aquilo que todos, menos ele, Governo, vão dizendo que está mal, é realmente preferível que se reduzam os impostos. O que acaba por dar extrema e dupla razão ao Presidente do PSD.
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