INTERVALO (I)
Portugal está perigoso. Não fujo à sensação de estarmos no meio da ponte. E nem sequer tenho a certeza de que sabemos para onde ir. Se para a direita. Se para a esquerda. Se para baixo. E, confesso, custa-me estar a fazer de mago, tentando adivinhar. Até porque, dependendo de mim também, não depende só de mim. Foi por isso que decidi fazer um intervalo. Durante duas semanas, às malvas a situação económica do país. Às malvas o absurdo de estarmos a discutir se pagamos ou não ao Director Geral dos Impostos o que ele iniludivelmente merece, enquanto pagamos tranquilamente, durante cinco anos, um ordenado assim mesmo chorudo a alguém que publicamente confessa não ter feito rigorosamente nada durante esse tempo. Isso, o homem da CP. Às malvas tudo o quanto possa preocupar ou alegrar. Limbo com o pensamento crítico. E viagem pela especulação intelectual. O problema é que, chegado aqui, eu tinha que decidir sobre que falar. E defrontei-me com a dificuldade da decisão. É mesmo difícil decidir. É um processo complicado. Por isso é que o Engenheiro Sócrates está com o topo mais branco que a Serra da Estrela antes do aquecimento global. E foi isso que me decidiu. A minha tarefa, durante o intervalo seria analisar o processo de decisão.
Uma primeira dificuldade. Não queria falar em termos técnicos, A técnica, seja no que for, só serve para destruir a emoção do imprevisto, para transformar cada um de nós, e eventualmente, num cidadão bem comportado dum qualquer admirável mundo novo, para estereotipar o gesto, para igualizar o ser, para destruir a criatividade. A técnica é a norma ao serviço da produtividade, nunca da criatividade. Um pintor técnicamente apetrechado, pode colocar numa tela uma pintura formalmente perfeita e, todavia, não ter feito arte. É isso. A técnica nunca será arte. Embora a arte possa requerer técnica. Quero eu com isto dizer que devem desconfiar de quem seja um fanático da técnica. Felizmente, o ser humano é muito mais valioso e versátil do que a peça dum qualquer maquinismo. É sempre capaz, ele, ser humano, dum toque de génio, duma pincelada nova, duma nota nova na escala da Vida. É sempre capaz de ir para além daquilo que já foi inventado antes dele. E não pensem que isto não tem que ver com o tema. Porventura, será até a única coisa, relacionada com o tema, que lerão. Afinal, o processo de decisão é, ainda ele, um processo de fabricação da qual algum produto há-de resultar.
A segunda dificuldade se prantava. E está relacionada com a primeira. Havendo que fugir à estopada duma enfadonha charla de xxx e yyy, cumpria encontrar uma aproximação que fosse agradável. Viradas e reviradas as alternativas, acabei por me centrar numa. Um tema apropriado, tanto por ser agradável, como por ser polémico, era o casamento. Diria mesmo, por ser agradavelmente polémico. Ou polémicamente agradável. Às vezes, agradável primeiro e polémico depois. Ponderados os prós e os contras, decidi-me.
É curioso como, se eu quisesse falar do processo de decisão, tinha já todos os ingredientes necessários. Um fim a conseguir, vários modos alternativos para o atingir, ponderação das vantagens relativas de cada um desses modos, produção da decisão e implementação da decisão. Só faltaria, neste ponto, o controlo da execução e a verificação do grau com que o fim fora atingido. Mas isso só poderia ser feito daqui a pouco. Mas eu não quero enveredar por esse caminho. Eu queria, quero falar de algo menos estéril. Quase sempre. O casamento. E é disso que vou falar-lhes.
Casar é uma decisão difícil. Porventura das mais difíceis que temos de produzir durante a nossa vida. Um parêntesis aqui. Para dizer que a vida duma pessoa não é senão um encadeado permanente de decisões consecutivas. Um bébé recém-nascido, quando procura o biberão, está a produzir uma decisão. Entre a alternativa de chuchar secamente no dedo, geralmente o polegar, ou alimentar-se na protuberância de borracha. Como em qualquer outra decisão, ele tem um fim em vista - alimentar-se - e escolhe entre alternativas à sua disposição. Acontece que ele não sabe que uma das alternativas não conduz ao fim desejado. E não sabe porque a informação que utiliza, inconscientemente, trazida dos alvores da humanidade, embora perfeita, não pode contar com a interpretação esclarecida da sua inteligência. Por isso erra, por vezes, escolhendo o dedo como se de biberão se tratasse.
Terão notado a existência, neste exemplo simples, de duas ou três notas de extraordinária utilidade para todas as demais decisões que havemos de produzir na nossa vida. Em primeiro lugar, temos que ter uma definição escorreita do fim que pretendemos atingir com a decisão a tomar. As decisões não têm outro objectivo senão fazerem com que aconteça aquilo que se quer. As decisões são a enxada com que se lavra o terreno da nossa vida, para que nele não nasçam só plantas do acaso. Por isso, é importante saber-se bem o pretendido.
Depois, é necessária a inventariação de todos os caminhos que nos podem conduzir ao fim pretendido. Tendo em conta aquilo que é importante para o decisor. Imaginem que cada decisão é como ir ao Algarve em tempo de férias. Com vários meios e trajectos alternativos para o conseguir. Se o importante é o tempo da viagem, então vou de avião. Mas se o dinheiro disponível é uma condicionante, então vou de automóvel e pelo itinerário amarelo. Se a segurança é imprescindível, vou de comboio. Mas se, tendo que viajar de automóvel, a comodidade é factor imperioso, vou pelo itinerário principal ou pela auto-estrada, se a houver. Podendo ainda, se o que procuro é chegar ao Algarve com o máximo de aventura, escolher a ida à boleia. E ainda, se for um fanático da forma física, até posso ir a pé.
As alternativas são já tantas, que o melhor é começar a escrever, para não me perder no labirinto mental da análise. Numa folha A4, traço uns riscos verticais e outros horizontais. Encimo o quadro com o título "Ida para o Algarve". Nas linhas, à esquerda, descrevo as diferentes alternativas que tenho - avião, combóio, automóvel nos diferentes itinerários, à boleia, a pé. Nas colunas, em cima, os factores de apreciação - rapidez, segurança, aventura, forma física, distracção, custo, etc.. E no cruzamento de cada linha com cada coluna, assinalo de modo codificado - por exemplo 1 para vantagem e 0 para desvantagem. No fim, o quadro é bem capaz de ser uma ajuda preciosa para que eu produza a minha decisão final.
Apesar desta preparação toda, as surpresas são, porém, bem possíveis. Um acidente na estrada. O atraso dos aviões ou dos comboios. Algum atrevido ou atrevida a dar-nos boleia. Até um aborrecido entorse num buraco do caminho. Nunca se poderão evitar, em qualquer processo de decisão, os imponderáveis, os imprevistos. Felizmente, a vida não é traçada a régua e compasso. Mas esses imponderáveis serão reduzidos ao mínimo quanto maior conhecimento tivermos das alternativas disponíveis para atingir um fim. Em superfície - que alternativas? - e em profundidade - vantagens e inconvenientes, estruturais e conjunturais, de cada uma delas? Isto é, depois de definido o fim a atingir, o passo seguinte é obter toda a informação disponível sobre os modos de o atingir. Sistematizar essa informação. E aplicar à análise dessa informação o esclarecimento da inteligência, não vá escolhermos ficar a chuchar no dedo, como o bébé da fábula.
Chegado a este ponto, tudo quanto eu posso concluir é que sou verdadeiramente caótico, quando me ponho a falar. Propuz-me falar do casamento e tenho passado o tempo a falar já do bébé. Não é costume ser assim. Ou melhor. Não era costume ser assim. Agora parece que já é mais comum que assim seja. Os tempos mudaram. O que não é de admirar. A Vida, o tal encadeado de decisões de que já falei, é uma realidade mutável a cada instante. Costumo mesmo dizer que não há presente. Só há passado e futuro. O presente é uma fronteira imaginária, perenemente móvel. A informação que temos é toda ela do passado. E a decisão destina-se a produzir efeitos no futuro. Num futuro do qual apenas sabemos que não vai ser rigorosamente igual ao passado. Donde, a necessidade de produzir decisões com o máximo de flexibilidade possível. Com a possibilidade de inflectir caminhos na sua implementação. Se possível, com a possibilidade de voltar atrás com o mínimo de estragos e tomar outro caminho. Nunca devemos produzir uma decisão sem deixar de contemplar alternativas para atingir o fim desejado. Imaginem só o que seria decidir comer castanhas sem contemplar a possibilidade de deitar uma fora. Ia ser bonito logo que encontrássemos uma com bicho!
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 11/1/2007
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