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20.10.10

MEMÓRIA

EM QUE FICAMOS?

Pelos vistos, a França e a Alemanha preparam-se para mandar às malvas o pacto de estabilidade europeu. Isto é, preparam-se para exceder o défice público admitido por acordo entre os países europeus. O que, a acontecer, coloca numa nova perspectiva o esforço que o Governo vem fazendo, desde que iniciou o seu mandato, para reconduzir o défice público para níveis aceitáveis pela Comunidade Europeia.

Rememoremos que o Governo se viu na necessidade de renunciar à quase generalidade das suas propostas eleitorais. Ao contrário do que muitas vezes se diz na praça pública, não sou dos que acredito que os Governos deixem de cumprir por mal formação. O que geralmente acontece é que os políticos sabem que as eleições se ganham vendendo esperanças. Imagine-se que Durão Barroso, por ciência que devia ter quando em campanha, prometia aos portugueses o que veio a fazer no ano que se seguiu. Alguém é suficientemente cândido para imaginar que ele ganharia as eleições? E, no entanto era imperioso que as ganhasse. Não podíamos continuar como estávamos. As dificuldades que atravessamos é produto de muitos anos de Governo preguiçoso. E de uma outra coisa. Da convicção de que tínhamos que reequilibrar o nosso défice público, sob pena de sermos excomungados - ou equivalente - pela União Europeia. O que até era verdade. Mas que a atitude anunciada pelos dois gigantes europeus vem colocar, como disse, em nova perspectiva.

Em primeiro lugar, tenhamos presente que, pelo menos desde a grande recessão dos anos vinte do século passado, a teoria económica aceitou pacificamente que a despesa do Estado podia ser - e era, e foi - uma grande correctora dos ciclos económicos. Gastando quando os tempos eram de recessão, os Governos minoravam as crises. E não gastando tanto quando se estava em expansão, os Governos reduziam o aquecimento da economia, que também pode ser prejudicial. Se ainda mandasse essa teoria económica, o Governo Português estaria a realizar mais investimentos agora do que aqui há cinco anos, quando a conjuntura era favorável.

Mas a moeda única para comunidades diversas, nem sequer solidariamente nacionais, estragou tudo. Havia a necessidade de não deixar que os países vivessem à tripa forra. Já que, consumindo e não produzindo, estaríamos em condições de "roubar" o produto de outras comunidades utilizando a mesma moeda. E é isso que o pacto de estabilidade europeu procura assegurar. Que não haverá países a viver à custa dos outros. Aderimos à moeda única. Com evidentes benefícios em algumas áreas. Desde logo, com esta obrigação de nos governarmos bem. Mas também com alguns sacrifícios. Governar bem um país desgovernado pode ter custos sociais muito elevado. Além de que a redução drástica da capacidade dos Governos para intervir na conjuntura económica deixa as correcções daquela às simples manipulações monetárias, determinadas pelo Banco Central Europeu. É isso que está a acontecer pela Europa fora, neste tempo de crise económica generalizada e já longa. É poder intervir na correcção da crise que os Governos da França e da Alemanha estão à procura. Como outros seguramente desejarão.

Chegados aqui, diríamos: mas porque é que temos passado por estes sacrifícios todos para conseguir obter algo que os nossos parceiros se propõem abandonar? E é esta a nova perspectiva para a acção do Governo no último ano e meio quase. Creio que por três razões, essencialmente.

A primeira é que Portugal é Portugal - um país pequenino, uma economia frágil e marginal, poucos eleitores ao nível europeu - e a França e a Alemanha são "apenas" as duas economias mais possantes da União, com populações que, por si só, praticamente fazem uma maioria. Traduzindo em miúdos: quer queiramos quer não, são esses dois países que mandam na Europa. Donde, ser-lhes possível avançar como uma alternativa que a Portugal não seria seguramente admitida. A não ser depois de eles também a quererem para si.

A segunda é que a França e a Alemanha, devido à pujança das suas economias, mesmo em tempo de crise, podem dar-se ao luxo de um desequilíbrio momentâneo. Assim que a actividade económica retome, logo o reequilíbrio é conseguido. Dificilmente se pode supor que o mesmo aconteça em Portugal. O desequilíbrio português, designadamente nas despesas do Estado, é endémico e estrutural. Enquanto o défice público na França e na Alemanha é originado por investimentos, reprodutores de riqueza, o défice português é essencialmente gerado por despesas de funcionamento do Estado, elas próprias improdutivas. Quando Cavaco Silva chamou "monstro" ao Orçamento Geral do Estado do nosso país, sabia do que estava a falar. Uma monstruosidade imortal, parece.

A terceira, de algum modo relacionada com a anterior, é que não resolvemos estruturalmente nada com o alargamento do défice público. Contrariamos a crise económica de algum modo. Mas é apenas até à próxima curva. A qual gerará sacrifícios ainda maiores. Não quisemos ver que a esmagadora parcela do desenvolvimento a que assistimos, no nosso país, nos últimos quinze/vinte anos, foi devida aoas dinheiros que, gratuitamente, nos chegaram de Bruxelas. Dinheiros que, se tivessem sido bem aplicados, deveriam chegar para nos encontrarmos, agora, com margem até para um momentâneo desequilíbrio nas contas públicas. Muitas vozes se fizeram ouvir, perguntando: "e quando o dinheiro de Bruxelas se acabar?". Entre elas, a minha. Debalde. A sumptuosidade foi mais apelativa do que a eficiência. Cada qual procurou abocanhar a fatia do bolo possível, para o "comer" a seu bel-prazer. Acho que merecemos todos, enquanto colectivo, o destino que agora percorremos.

Não obstante o dito, fica ainda algo. Valerá a pena, apesar de sabermos que quanto mais cedo pusermos termo aos nossos sacrifícios, mais teremos no futuro, aceitar essa consequência e procurarmos minorar os efeitos da crise actual? Creio que o Senhor Primeiro-Ministro, ao afirmar que a recuperação começa no próximo ano, está a contar com duas coisas. Primeiro, que a actividade económica internacional inicie a sua recuperação ainda este ano - como parece haver sinais - e os efeitos disso comecem a verificar-se em Portugal, com o atraso habitual. Segundo, que o Estado possa abrir os cordões à bolsa, sobretudo se as necessidades de acelerar a recuperação económica na Europa levarem outros países - como a França e a Alemanha - a postergar para segundo plano as duras condições de equilíbrio impostas pela Comunidade.

Assim, penso que, efectivamente, está para breve o alívio. Mesmo que seja momentâneo. Surpreendente, por inesperado, o anúncio de diversos investimentos estrangeiros avultados. Investimentos que contam, seguramente, com apoios, avultados também, por parte do Estado Português. Gostaria de saber, com pormenor, a importância do papel da API - Agência Portuguesa para o Investimento, gerida por esses dois economistas de eleição, terrivelmente pragmáticos e honestos na sua actividade profissional, que são Miguel Cadilhe e Costa Lima. Porque, a confirmar-se que aquele anúncio tem muito do seu esforço, seria a segunda vez que Portugal ficaria a dever - a um por umas razões e a a outro por outras - inestimáveis serviços.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 20/7/2003

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