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27.10.10

MEMÓRIA

UM PAÍS COMERCIAL?

Em finais deste mês de Abril, vai realizar-se, na Vila da Feira, o Congresso dos Empresários, subordinado ao tema "A Retoma e as Prioridades da Mudança". Julgo particularmente feliz o tema escolhido. Se alguém sabe quais as veredas que devemos seguir para retomar o caminho interrompido em meados dos anos noventa, são os empresários. Eles conhecem a realidade do país melhor do que ninguém. As nossas energias. Os nossos pontos fracos e os nossos pontos fortes. Bom será que os políticos estivessem atentos ao que eles vão dizer. E não se remetam à cátedra onde estão sentados, muitas vezes sem terem da realidade a mínima noção.

Quando pensamos no desenvolvimento económico nacional, conseguimos identificar um conjunto de barreiras que se lhe opõem. Desde logo, o baixo nível médio de educação da população. Não me refiro ao número de anos de educação escolar contabilizados pela população, designadamente a mais jovem. Se aferido por este indicador, Portugal deveria estar já num patamar de desenvolvimento assinalável, de tal modo foram grandes os progressos neste domínio. Mas, ao crescimento da frequência escolar verificado nestes últimos trinta anos, não correspondeu uma melhoria qualitativa idêntica. Bem antes pelo contrário. A qualidade do ensino escolar baixou substancialmente. Razão porque - não estou a ser original neste domínio - a batalha primeira a travar seja a da melhoria qualitativa da educação escolar. Nessa melhoria deve ser incluída, prementemente, a educação cívica. Nenhuma sociedade chegará a ser verdadeiramente desenvolvida enquanto os seus cidadãos não conhecerem bem o seu papel no seio dela, enquanto a generalidade dos cidadãos não for civicamente exigente, tanto de cada um para consigo próprio, como de cada um para com todos os outros.

Uma outra barreira é a organização administrativa do Estado (Justiça incluída). Não conheceremos o desenvolvimento económico enquanto a máquina administrativa pública não for eficiente. Esta é, provavelmente, a segunda barreira mais importante ao desenvolvimento económico português. Não só a actual - e péssima - organização consome improdutivamente recursos importantes da comunidade, como impede a recolha de meios mais substanciais e trava a natural iniciativa empreendedora. É urgente encarar a reforma administrativa como um imperativo nacional, a justificar um acordo de regime entre todos os actores políticos e sociais. Se não formos capazes de encontrar um acordo neste domínio, podemos dizer adeus ao desenvolvimento económico. E todos, sem exclusão, seremos culpados disso. Não há visão político-partidária que conduza à absolvição de quem quer que seja.

Uma terceira barreira é, em minha opinião, a de ainda não termos encontrado a nossa verdadeira vocação económica, depois da queda da vocação colonialista que nos sustentou durante meio milénio. Temos andado perdidos no mapa das nossas virtudes e defeitos. Sem bem os conseguir distinguir. E, todavia, parece-me tão fácil. Basta precorrermos a nossa História e vermos onde, quando, como, tivemos sucesso. Conquistamos espaço geográfico aos outros. Descobrimos novos espaços. Fomos zelosos da nossa independência. Fizemos dos novos espaços, conquistados ou descobertos, domínios da nossa capacidade de diálogo com os outros. Aproveitamos a nossas capacidade de diálogo para comerciar. Fizemo-lo com agressividade, denodadamente. Muitas vezes perecendo na empresa. Tiramos partido de uma situação geográfica única, ponto de confluência e lugar geométrico de três culturas. Porque havemos de negar agora aquilo que foi a razão do nosso sucesso como Pátria independente?

Temos poucos recursos naturais. E somos um país mais pedrícola do que agrícola. Fica-nos um mar imenso. Que mal temos sabido aproveitar. Alguém dizia, há pouco, que as nossas actividades piscatórias estavam no estertor da agonia. Porventura terá razão. Como isso dói. Temos insistido na industrialização. Quando estaremos em condições de competir industrialmente com as outras nações, num mundo globalizado? Se assente a nossa industrialização na mão-de-obra barata perdemos para os menos desenvolvidos. Se assente no desenvolvimento tecnológico, perdemos para os mais desenvolvidos. Além disso, a industrialização requer uma abundância de capital de que não dispomos. Não é um erro insistirmos na industrialização? Restam as actividades comerciais e de serviços. Onde temos vantagens competitivas. Porque assentes em qualidades humanas que são mais evidentes em nós do que em muitos outros povos.

Não tenho a pretensão, naturalmente, de querer saber o que melhor convém para um desenvolvimento económico sustentado da nossa sociedade. Limito-me a raciocinar. E a admitir um facto simples. Tal como acontece com cada um dos seres humanos no plano clínico, também as sociedade têm uma história que determina a sua trajectória futura. Os franceses sempre foram agrícolas e têm na agricultura o seu trunfo mais forte. Os suíços sempre foram financeiros e continuam a ser os maiores do mundo. Os alemães sempre foram industriais e têm a indústria mais forte da Europa. Os italianos sempre foram artistas e na arte assentam muito da sua actividade económica (a moda é, essencialmente, arte). Os ingleses e os holandeses sempre foram comerciantes e continuam a sê-lo. Fazermos da indústria a alavanca motriz do nosso desenvolvimento parece ser uma rematada asneira. Como navegadores, deveríamos escapulir-nos para o mar. Como comerciantes - desde os primórdios da nacionalidade, quando os nossos artesãos iam às feiras da Flandres vender os seus artigos - deveríamos voltar-nos para o comércio.

Acresce uma outra razão de monta. A relevância do comércio, designadamente do pequeno comércio tradicional, nos dados macroeconómicos, é impressionante. Nos cerca de cinco milhões de trabalhadores activos que temos em Portugal, o comércio emprega cerca de 35%, isto é, muito próximo de dois milhões de pessoas. E os serviços empregam maias cerca de um milhão de pessoas. Isto é, no total, mais de metade da população activa portuguesa está no comércio e serviços. Além disso, o pequeno comércio tradicional, de rua, assegura uma vivência das comunidades saudável, integrada, não desertificada. E, como se tudo isto não bastasse, o pequeno comércio e os serviços não emigram para países de mão de obra mais barata nem são alvo de aquisições mais ou menos estrangeiradas. Não hesito em afirmar que, visto desta perspectiva macro, o grande pulsar económico do país repousa no pequeno comércio e nos serviços.

Estas deveriam ser razões para a existência de programas políticos de incentivo ao comércio e aos serviços. No comércio, o incentivo deveria ir no sentido de favorecer a instalação da pequena iniciativa individual. Não consigo entender porque se gastam rios de recursos com a instalação de projectos industriais estrangeiros que asseguram, quase sempre por um período limitado de tempo, algumas centenas, raramente milhares, de postos de trabalho, e não se fomenta decididamente esta actividade, microscópica, é verdade, mas que, tal como a actividade dos micro-organismos na vida biológica, é essencial à vida económica. Julgo que a situação descrita resulta muito da falta de capacidade de associação dos pequenos empresários. Talvez seja tempo de mudar isso. E, se o Congresso dos Empresários não estiver muito voltado para a defesa dos grandes empresários e para as suas reivindicações político-económicas, talvez seja o tempo de tal acontecer.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 6/4/2004

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