O VELÓRIO
Escrevo na véspera da greve geral convocada pelas duas confederações sindicais. A intenção de uma greve geral é sempre a de tentar paralisar um país. Embora sabendo muito bem os organizadores que tal é praticamente impossível. Mas sabem também que o grau de adesão à proposta de greve geral é susceptível de impressionar quem manda. E, desta vez, prevejo uma adesão muito grande. Uma greve geral é proposta quando as confederações sindicais sentem que o descontentamento popular é muito grande. Tal como acontece agora em Portugal. O facto sugere alguns comentários que presumo de algum interesse.
Em primeiro lugar, com quem é que os portugueses estão descontentes? Naturalmente, com o Governo em primeiro lugar. Apesar de terem sido eles a elegê-lo. Mas tornam o desagrado extensivo a toda a classe política. Se o descontentamento fosse com o Governo exclusivamente, a democracia oferecia uma outra solução bem menos custosa para o país, isto é, bem menos custosa para os eventuais grevistas. Derrubava-se o Governo, colocava-se lá outro, e a vida continuava. Mas não. Os cidadãos parecem querer a estabilidade política. Pelo menos não se manifestam contra as sucessivas declarações de responsáveis pelo estado a que chegamos nesse sentido e parecem, portanto, aceitá-las. Pelo que a sua manifestação poderosa – quase última arma – de amanhã tem todos os políticos por alvo. Será esta, porventura, a maior afirmação da greve geral. E será bom que os políticos, todos, atentem bem nela. E não se limitem a dizer que a aceitam por ser um direito democrático, num gesto que recorda o encolher de ombros, e prossigam a agir tal e qual tem agido até aqui.
Mas a situação mostra ainda, a meu ver, outro facto com alguma gravidade. A organização democrática, tal como está concebida e tal como funciona, efectivamente não resolve – ao contrário do que frequentemente nos dizem os políticos - todos os problemas políticos. Não trabalhar, no estado em que se encontra o país é um pretenso remédio, uma espécie de placebo, que apenas pode deixar piorar o doente. Admito, mesmo, que as duas confederações sindicais, muito particularmente a socialista UGT, tenham provocado, ou aderido a, esta greve geral com a prosaica intenção da dona de casa que, para evitar desastre maior, retira a válvula de pressão à panela para que ela não rebente. Estaríamos, se assim fosse, de uma greve geral preventiva, para que maior perturbação social não suceda. O que deixa o cidadão comum, democraticamente livre, sujeito ao que for ditado pelos poderes públicos. Não apenas os nossos mas também os da Europa. Uma reflexão a fazer pelos portugueses. O sistema não lhes dá ferramentas suficientes que não sejam, elas próprias, prejudiciais para quem as usa. É necessário recorrer a uma arma perigosa e bastante prejudicial para os interesses do país – e o país são esses mesmos cidadãos. Uma greve geral causa prejuízos assinaláveis.
No dia a seguir à greve geral, tudo vai continuar na mesma. Continua a governar quem está a governar. Continuam as políticas que quem está a governar julga adequadas. Os demais políticos que, de algum modo, não estão associados à governação procuram retirar dividendos de propaganda que possam ser benéficos numa próxima eleição. E são os próprios grevistas que saem prejudicados do acto por eles praticado. Recebem menos no fim do mês e o país tem menos para lhes pagar nos meses seguintes. As medidas de austeridade continuarão a produzir os seus efeitos. E assim continuará enquanto toda a Europa não se decidir a utilizar outros instrumentos para debelar a crise. Enquanto estivermos no Euro, temos que seguir as instruções by the book e nenhuma outra alternativa nos estará disponível. “Abandonemos o Euro!”, pode ser uma tentação daqueles que vêem curto. Seria, então, a desgraça total. Teríamos de aguentar uma moeda – eventualmente o Escudo Novo – mais desvalorizada em relação às outras moedas e, particularmente ao Euro. Duzentos escudos não chegariam para comprar um Euro, mesmo que recebêssemos duzentos escudos na conversão inicial. E, mais, continuaríamos com o nosso oceano de dívidas expresso em euros. O que quer dizer, ficaríamos imensamente mais endividados.
Vemos a Grécia, a Irlanda, Espanha e Portugal atrapalhados. Com os dois primeiros, já se solidarizou toda a Europa Comunitária. Não deixará de fazer o mesmo com os outros dois. Os “mercados” estão apenas a forçar a Europa a agir como devia desde o início. Não é excluído que, mais tarde ou mais cedo, venha a acontecer com outros países aquilo a que estamos a assistir relativamente aos quatro países citados. E a Europa continuará a vir em socorro. E os socorristas serão sempre os mesmos. Pelo menos cinco dos seis países que a fundaram. O que se tornará num peso quase insuportável para toda a Comunidade. Do qual só se libertará assumindo políticas idênticas às que estão a ser impostas aos países agora em dificuldades. Aumento de impostos e redução dos apoios solidários do Estado. E a consequência disto é, a meu ver, inelutável.
A Europa tem-se distinguido, no mundo, pela disponibilidade de uma solidariedade social mais ou menos profunda. Basta olhar para a Constituição de um país pobretanas, como nós somos, para ver lá até que profundidade vai a solidariedade social. Educação e Saúde gratuitas para todos, pede a nossa Constituição. É certo que aparece lá um vocábulo – “tendencialmente” – destinado a caminhar para lá em lugar de afirmar que já estamos lá. Mas tudo foi feito para que assim fosse, Inclusivamente se fez mais nesta caminhada que nos trouxe de 1974 até agora. Por exemplo, assegurar um rendimento mínimo atribuído a muitos para os quais se justificava e a outros, muitos, que o não mereciam. E é um pouco assim por toda a Europa. Insustentável! Pouco a pouco, tudo isto vai desaparecer. O que quer dizer que o Estado Social Europeu vai morrer. Se demorará muito ou pouco, falta ainda ver. Mas vai morrer. Aliás, ao olhar para a situação europeia neste momento, tem-se a impressão de estarmos já todos no velório do Estado Social Europeu. E certas greves gerais assumem, por isso, a função de extrema-unção serôdia.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 25/11/2010
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