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30.11.10

MEMÓRIA

AS VACAS NÃO FAZEM DIETA

Aquela pequena aldeia não vem nos mapas tradicionais. Só se pode dar conta dela se olharmos para as cartas militares. Ou, então, passando por ela por acaso. Porque ninguém vai a Pitões de propósito. O nome de aldeia é este ou outro qualquer. Não importa. É uma aldeia portuguesa, perdida no sopé de uns montes quaisquer do país pedrícola que somos. Uma dúzia de casas, poucas meias dúzias de habitantes e cabeças de gado. Ovino e bovino. Mais de mil cabeças já teve, dizia o narrador. Agora são escassas centenas. O gado tem diminuído ao ritmo da redução dos habitantes. Na aldeia, uns são pastores. Outros trabalham no campo, produzindo alimento para o gado e algum para a subsistência própria. Um por outro trabalha fora da aldeia. Como o pai de dois dos nossos heróis, que trabalha na construção civil. As casas são de pedra à vista, ao bom estilo rural português. Fogão de lenha, mais lareira que fogão, a ocupar meia cozinha. Enormes. A cozinha e a lareira. Não consta o nascimento de qualquer personalidade da nossa história nessa aldeia. Nem nenhum político. Nem nenhum jogador de futebol. Nem os montes são próprios nem as bolas aparecem. A primeira prenda que um dos nossos heróis recebeu na vida foi, ao que contava o narrador, um tractor de corda (ou de pilha, não cheguei a perceber bem) oferecido pela junta de freguesia no Natal do ano passado. Curioso. Um tractor. Parece uma prenda inteligente. A melhor para gente do campo. Prenda igual para todos os miúdos da aldeia. Não mais de seis. Apesar da trivialidade duma vida vivida numa aldeia assim, esta ficou conhecida de meio Portugal. Porque lá, nessa aldeia humilde, mora um exemplo. Melhor, quatro exemplos, ao que parece. O pai não deu a cara. Mas tem que ser também um exemplo para ter uma mulher assim e dois filhos assim.

Não há, na aldeia – nem, ao que consta, perto – autoestradas. Não há portagens. E, por isso, não há boicotes de portagens. Não há centro de saúde. E, se calhar por isso, também não há muitas doenças. Nem baixas da Segurança Social. Não há esquadra de polícia. E, porventura por isso, não há desordens. Nem crimes. Nem droga. Não há jardins ou, então, toda a aldeia é um jardim. Por isso os miúdos brincam no empedrado da calçada. Não há transportes colectivos. Com uma consequência. Nem há protestos contra o preço das passagens e os músculos enrijecem-se no calcorrear dos montes e dos campos. Não há parques de estacionamento. E, por isso, não há automóveis. E, no entanto, os portugueses da aldeia pagam os seus impostos. Quanto mais não seja, o IVA. E o imposto profissional, no caso do pai no nosso exemplo. Seria de esperar que, neste Portugal de protestos, ouvíssemos alguns na aldeia. Mas não.

Ouvimos o Daniel falar do trabalho como a coisa mais natural do mundo. Nunca ouviu falar de trabalho infantil. De que é um dos exemplos. Reparte o seu tempo entre a escola, os deveres trazidos para casa e a guarda das vacas da família. A quem alimenta com devoção. Para ele, a ração das vacas tem que ser suficiente. Estas têm que deixar ainda alguma no comedouro, o que é sinal de estarem bem alimentadas. Ele sabe, por intuição ou ouvir dizer, que as vacas são a única riqueza da família. Sabe que a existência dele, da irmã, da mãe e do pai depende, em grande medida, das vacas. Com à vontade, considera importante a sua função de guardador de vacas. A ponto de se propor ensinar ao seu ídolo Mantorras o ofício, se este o ensinar a jogar futebol. De olhar maroto a brincar no canto dos olhos, fala das vacas com o entusiasmo com que um astrónomo fala das estrelas. Daniel substituiu a brincadeira própria dos seus tenros anos pelo trabalho. Que assume como um dever quase lúdico. Sem horários. Sem férias. Sem intervalos para ir à casa de banho. Sem greves. Sem abonos para profissão de risco. Sem reivindicações. Sem azedume. Sem reclamar. Nos seus verdes anos, o Daniel é um dos melhores trabalhadores do nosso país.

Ouvimos a irmã do Daniel. Pouco mais de dez anos em corpo de menina. A mesma dedicação ao trabalho, na ajuda da mãe, no tempo que a escola deixa livre. Com uma clareza imprópria de tão poucos anos, assume com responsabilidade a obrigação de trabalhar, de ajudar a mãe, de estudar. Sem estudos nem agricultor se pode ser, diz ela. Por intuição ou ouvir dizer, também, a irmã do Daniel sabe mais das necessidades do futuro do que a generalidade dos trabalhadores sindicalizados do meu país. Sabe que brincadeira só é admissível depois de todos os deveres terem sido cumpridos. É preciso contribuir para as necessidades da família, diz ela. Com trabalho. A irmã do Daniel é uma das melhores trabalhadoras do país.

Ouvimos a mãe do Daniel. A clareza das suas ideias deixa-nos espantados. Como é possível ter uma visão tão clara do dever cívico, familiar, pessoal, numa aldeia perdida no interior profundo do país? Quer dar aos filhos o melhor futuro possível, quer deixá-los ir tão longe quanto sejam capazes. Mas sabe que isso só será possível com o trabalho esforçado de todos, com ela à cabeça. Quando ficamos a dever alguma coisa a alguém por termos comprado alguma coisa de que precisámos, eles – os filhos – sabem. E sabem que, enquanto não pagarmos, não pode haver prendas para ninguém. Trabalha todos os dias. Quando há uma festa num qualquer fim de semana, ou vai ela ou vai o homem. Não podem ir os dois. “Porque as vacas não fazem dieta”, diz ela. Têm que comer todos os dias, duas vezes por dia, sábados e domingos incluídos. Revê-se, com vaidade, tanto na inteligência como nas qualidades de trabalho dos dois filhos. Quando acabo de a ouvir falar, sorridente, no pequeno ecrã do meu televisor, levanto-me do sofá, inclino-me levemente, e murmuro: os meus respeitos, minha Senhora! É não só uma grande Mãe, como é uma grande Senhora, uma grande Mulher, uma grande Cidadã, uma grande Portuguesa. Os meus respeitos, minha Senhora! Ela não me pode ouvir. Mas eu fico tranquilo com a minha consciência. Porque, além do mais, neste pessimismo sobre o futuro do meu país, que por aqui vou deixando em retalhos quase todas as semanas, vejo surgir uma ténue luz. Se ainda há, no meu país, portugueses assim, como o Daniel, a irmã e a mãe, então o meu país ainda tem uma hipótese. Uma esperança. Um futuro.

Quando o programa termina, segue-se o noticiário. A abrir, o coro de protestos pela reposição das portagens na CREL. Reposição e não imposição, não confundamos. Reposição de algo pretensamente abolido por um Governo irresponsável. Que se dá ao luxo de liderar os protestos. Porventura, com a esperança de que, tal como aconteceu na Ponte 25 de Abril aqui há uns anos, a polícia venha e rasgue alguns fatos. Uma náusea profunda invade-me perante os protestos. Não por mim. Mas pelo Daniel, pela irmã e pela mãe. Será uma injustiça enorme fazê-los pagar o custo daquela via rápida. A eles, que não têm autoestrada. Nem centro de saúde. Nem esquadra de polícia. Nem jardim. Nem parque infantil para os Daniéis da aldeia. Nem aparcamentos. Nem pavilhão desportivo. Nem escola secundária. Para eles que, verdadeiramente, só têm trabalho.

Obrigado à TVI por ter trazido este caso ao nosso conhecimento. Fez mais pelo optimismo de que estamos precisados do que milhões de discursos inflamados.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 7/1/2003

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