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21.7.11

CRÓNICA DA SEMANA - II

A POSSIBILIDADE OCULTA

Acontece, por vezes, quando estamos de férias, como acontece comigo neste momento. Em férias, a crise perde bastante do seu significado, fica arrumada para quando o mês acabar. Comem-se menos umas amêijoas do que era costume e trincam-se mais umas sandes. E a tanto ela fica resumida. Dá-se uma aparente convalescença que, oxalá, não signifique o que estas convalescenças por vezes querem dizer, o prenúnico do passamento. Claro que não deixamos de pensar na doença, isto é, na crise. Mas olhámo-la de longe, como se ela fosse um passante ao nosso lado que, de todo, desconhecemos. E o espírito solta-se. Devaneia. Fantasia. Admite o absurdo como a coisa mais natural deste mundo. Assim me sucedeu. Tinha eu acabado de ouvir mais um apelo às autoridades europeias para que ajam depressa no debelar da crise, agora que a Itália também entrou na dança das dívidas, quando uma ideia mirabolante me atezanou o espírito até aí tranquilo:

- E se a presente situação, bem como a evolução que tem vindo a verificar-se, agradassem à Alemanha?

A economia alemã é, indubitavelmente, a mais forte da União Europeia. É assim desde que a recuperação da Guerra Mundial se deu e a unificação duas Alemanhas se lhe seguiu. Unificação que produziu, inicialmente, um abalo. Mas de curta duração. E, presentemente, nem a França lhe chega aos calcanhares. Tal faz dela o esteio sobre o qual recai o encargo de aguentar com a pressão das fragilidades das restantes economias que constituem a União. Tal parece um sacrifício, num primeiro olhar. Mas será realmente? A resposta parece acessível. Sim, se tais economias forem deixadas ao deus dará, a gerirem-se autonomamente, praticando os mesmos erros do passado. Mas já conclusão diferente será obtida se tal situação conduzir ao domínio das decisões desses países. Isto é, se eles puderem fazer apenas aquilo que a Alemanha permitir. E a par com os juros das diferentes dívidas financiadas em grande parte pela Alemanha, ou por ela garantidas, quer directamente quer através das instituições europeias, viria o domínio dessas economias, o que quer dizer, desses países.

Imaginando que tal poderia suceder, a situação gerada seria de uma ironia verdadeiramente gigantesca. A Alemanha haveria tido de esperar quase um século para concretizar as suas ambições de domínio sobre a Europa, após duas tentativas fracassadas, nas quais utilizara os seus exércitos. E, além disso, o seu domínio teria uma característica eminentemente financeira, exactamente a acusação mestra que o líder de uma daquelas tentativas fizera aos judeus que perseguira até à exaustão final.

Que pensaria disto o povo alemão? Com toda a franqueza, penso que devemos retirar da História as lições que ela comporta. A verdade é que, tendo perdido a I Grande Guerra, os alemães não esqueceram a humilhação e vinte anos mais tarde repetiram a aventura. Não esqueçamos que Adolf Hitler foi aclamado pela grande maioria dos alemães no início da sua terrível e trágica aventura. As consequências desta última foram devastadoras, muito mais do que as da primeira. Terá isso chegado para acto de contrição e para o firme propósito de nunca mais repetir? Ou estará, bem no fundo do coração alemão, oculta embora, a persistente vontade de dominar a Europa? É que agora, o domínio não é feito à custa de exércitos. Antes tem o dinheiro - e a original poderosíssima indústria alemã - como ponta de lança. E tem uma moeda única para tornar mais fácil esse domínio. Se admitimos que muito do domínio que os Estados Unidos exerceram sobre o mundo, na segunda metade do século passado, teve o dólar como arma, porque não há-de o Euro, tornado essencialmente moeda alemã pela força das circunstâncias (e do mau governo dos países europeus), exercer o mesmo papel no espaço restrito da europa? Verdadeiramente, afigura-se-me que os alemães só se defrontam com uma dificuldade para exercer tal papel, que é o seu idioma. Honestamente, tento pensar como se fosse alemão. E se a “minha” Alemanha fosse de tal modo poderosa que pudesse dar ordens a toda a Europa, penso que sentiria a ferida histórica da humilhação de 1945 mais ou menos curada.

E que pensariam disto os povos da Europa, subordinados aos ditames oriundos de Berlim? Directamente ou por interposta instituição, na circunstância a servir de testa de ferro apenas. Patriotismos à parte, talvez muitos de nós, atentas as circunstâncias em que vivemos actualmente e em que vamos viver num futuro próximo, talvez gostássemos da perspectiva. Claro que seríamos obrigados a viver e a trabalhar com a disciplina alemã. Mas se o troco fosse a Europa estável com que os alemães sempre sonharam - sob seu domínio, claro – e o desaparecimento das dificuldades com que nos debatemos, então admito que muitos desses povos admitiriam a eventualidade. Tanto mais que, de um ponto de vista meramente formal, continuariam a gozar de independência política. Apenas seriam dependentes economica e financeiramente.

Imagino que, por esta altura, o meu Leitor estará a abanar a cabeça com incredulidade. O Magalhães Pinto “passou-se”, pensará. Mas olhemos com alguma frieza para o que está a acontecer. Há muito que todos sabemos – ou, pelo menos, dissemos ou pensamos – que não resolver rapidamente os problemas da Grécia, da Irlanda e de Portugal levaria muito provavelmente ao contágio a nível mais alto. Ultimamente, acrescentamos a este raciocínio que tudo isto era resultado do ataque de uns Estados Unidos enfraquecidos, tendo por objctivo enfraquecer a Europa também e a manutenção de uma dada correlação de forças. Mas, se assim é e se repousa sobre a Alemanha a maior quota-parte da decisão de recurso, porque é que ela não é tomada? Porque são sucessivamente adiadas medidas que, no dizer dos especialistas, atalhariam o mal em curso?

Oxalá não seja porque as economias em dificuldades ainda são apenas as mais pequenotas e seja necessário esperar que a Itália, a Bélgica e a França caiam nas malhas das dificuldades. Seria curioso e de consequências imprevisíveis uma Europa conduzida pelos povos do Norte, com os do Sul subugados pelas dificuldades que eles próprios se encarregaram de criar.

Magalhães Pinto, em VIDA EECONÓMICA, em 21/7/2011

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