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23.9.10

CRÓNICA DA SEMANA - II

FAZ-DE-CONTA

O produto nacional cresceu ligeiramente em Agosto. Embandeira-se. Enquanto isso, o crescimento económico de grande parte dos nossos parceiros europeus foi bastante superior. A taxa de crescimento do desemprego diminuiu ligeiramente em Agosto. Mas o desemprego continuou a crescer, não obstante esse mês ser, tradicionalmente, de redução do número de desempregados. Diz-se que a despesa pública se manteve dentro dos parâmetros orçamentais em Agosto. Mas, todavia, continuou a crescer, quando precisávamos de lhe dar uma machadada substancial. O Primeiro-Ministro andou num afã impróprio de mês de férias a inaugurar creches e lares, respirando optimismo por todos os poros. Mas os mercados financeiros internacionais estiveram-se nas tintas para isso e elevaram as taxas de juro – isto é, o prémio de risco – para subscreverem títulos da dívida pública portuguesa. O mesmo senhor envia mensagens de segurança para os quatro cantos do mundo, dizendo que Portugal está bem e se recomenda. Entretanto, a Alemanha, o FMI, a OCDE e outros organismos financeiros internacionais enviam avisos a Portugal, dizendo que o caminho levado não é remédio. Ainda o mesmo senhor, mais os seus acólitos, berram aos quatro ventos que estão a defender p Estado Social dos bandidos que querem reimplantar o Estado Novo. Enquanto vão dando machadadas impiedosas nesse novo tipo de socialismo, sistematicamente piorando a situação dos mais desfavorecidos. Arrastamo-nos penosamente para o abismo, incapazes de tomar nas mãos um destino melhor. Vivemos um gigantesco faz-de-conta, olhos cerrados à verdade por obra e graça das picaretas falantes, artistas da palavra sempre a contarem planos de obras que não se farão. Faz-me lembrar alguns donos de empresas falidas que se dirigiam ao banco onde trabalhei, a pedir dinheiro para investimentos faraónicos, falando deles com um entusiasmo quase infantil – por isso fantástico – na vã tentativa de enganar os decisores. Esquecendo que o banco tinha acesso às contas da empresa e, por isso, sabia não haver salvação possível. Queriam parecer empresários, esses donos, e não passavam de coveiros. A censura da História não será castigo suficiente para aqueles que, abusando da credulidade de um povo simples e nada dado a reflectir, nos traçaram a rota.

Eu sei que seria penoso para os líderes de um país chegarem à televisão e dizerem ao povo, sem meias palavras, que o país está falido. Mais, afirma-se por aí que o povo não está preparado para ouvir a verdade. Numa admissão absurda de que é preciso mentir ao povo. Todavia, quando tudo vai mal à nossa volta, quando o mundo parece ruir à nossa volta, quando o desastre é eminente, só a verdade é verdadeiramente redentora e, porventura, salvadora. Cheguei a ter esperança de que o novo e principal líder da oposição fosse um homem de verdade. Jovem, sereno, aparentemente credível, voz carismática e atitude a presumir de verdadeira, era uma esperança. Tem, neste momento e para mim, tanta credibilidade como o líder do Governo. Deixou-se enrolar no jogo político comezinho, de prazos para eleições, de presidentes a eleger, nos cálculo mesquinho dos calendários partidários. E a Verdade, que esperávamos fosse o sublinhado mestre do seu discurso, foi varrida para debaixo do tapete. Em boa verdade, Portugal não precisa de mais políticos assim. Portugal precisa de alguém que, despido de ambições, chame os bois pelos nomes. De alguém que mande às malvas a chamada “estabilidade política” e dê uma patada no charco sem se importar com quem sai salpicado. Portugal precisa de abandonar, urgentemente, a política do faz-de-conta. De alguém que nos diga que é urgentemente preciso produzir mais e gastar menos. Que é preciso trabalhar mais e descansar menos. Que é preciso agir mais e falar menos. O problema de liderança que temos já não é o da credibilidade do líder, é o da credibilidade de toda uma classe. Pode ser que um político de verdade ganhe a credibilidade que todos os outros, os de faz-de-conta, perderam.

Atrevo-me a transcrever aqui, numa espécie de pré-apresentação, parte de um diálogo constante do meu próximo romance (NÃO HAVERÁ AMANHÃ), a publicar pelos finais de Outubro, com a acção a decorrer nos ambientes políticos, que mostra o verdadeiro duelo que devia travar-se em Portugal, a fim de que o Leitor possa tomar partido:

***

“- E no entanto é assim, Manel. Em toda a minha vida, nunca vi um político verdadeiro. E é por necessidade, filho. As pessoas não podem saber tudo…

- Claro que podem, pai – insistiu o professor com alguma veemência.

-…espera aí, ouve-me. As pessoas não podem saber tudo. Se falares sempre verdade, não te aguentas no cargo o mandato todo. As verdades, em política, são quase sempre dolorosas. Mentir é uma necessidade para poupar sofrimento ao povo. Quantas vezes, a esperança das pessoas é o que as faz aguentar a dureza da vida. Falar verdade seria matar essa esperança. E se matas a esperança, a torna é ainda mais dureza, mais sofrimento. O povo sabe isso. Prefere uma mentira a manter-lhe a esperança viva do que uma verdade a matá-la. Não acho mal o teu propósito, Manel. Mas vais ver. Não conseguirás senão uma de duas: ou abandonas o cargo, se fores eleito para ele, ou vais ter necessidade de enveredar pela mentira também. Se escolheres esta última, só quero que não sejas vítima, tu próprio, ao veres que, afinal, tens de ser igual aos outros.

- Vamos ver, pai. Sinto que é este o meu caminho e quero ir por ele.

O professor ficou a meditar nas palavras do pai. Era inaceitável ter de ser assim, como ele dizia. A mentira era a verdadeira arma assassina da esperança. Apanha-se mais depressa um mentiroso do que um coxo. E, demais, ninguém gosta de ser enganado. O povo merece ser tratado com ética, nos actos e nas palavras. Sobretudo, nas palavras. A mentira mata a esperança, era a frase a martelar-lhe o pensamento. Se é que ainda havia disso, em Portugal. Esperança. Provavelmente, não. Ouvem-se, por toda a parte, os choros de raiva das carpideiras e as orações fúnebres dos crentes. Portugal está dividido entre os que roubam e os que protestam contra os roubos. Todos assumindo a postura do mendigo. Pedindo. Todos pedem alguma coisa, desde o mais alto magistrado da nação até ao lixeiro da área. Sem esperança de receber alguma coisa. Pedem porque acreditam que, neste mundo onde a ética é ausente, quem não chora não mama. Atavismo bem português consubstanciado em aforismo popular. E, aos poucos, vamo-nos afundando no lamaçal do desespero. Temos décadas sem luz à nossa frente, sentimos mais do que pensamos. Não é a primeira vez. Nos nossos quase novecentos anos de história atravessamos várias vezes uma longa noite. Mas desta vez é pior. Não há independências para conquistar porque ninguém sobrevive independente no mundo de hoje. Não temos mundos para descobrir porque todo o mundo está descoberto já. Não temos patriotismos para adornar porque o patriotismo foi assassinado com toda a sua descendência.”

***

Oxalá isto possa servir de alguma coisa, para acabar de vez com o faz-de-conta nacional.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 23/9/2010

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