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29.9.10

MEMÓRIA

E AGORA?


"Péricles jamais sacrificou a sua independência face à Assembleia. Ao contrário, aqueles que lhe sucederam, sentindo estarem dependentes da vontade dos eleitores, definiam as suas políticas mais em função do que pensavam agradar ao povo do que em função do que a situação exigia."

Tucídides - "A Guerra do Peloponeso" - Século IV AC


Como mudou tão pouco o comportamento dos políticos, em dois milénios e meio! Os de hoje não são muito diferentes dos existentes na democracia ateniense, quatro séculos antes de Cristo nascer. Com Péricles, Atenas havia atingido o zénite do seu brilho democrático, cultural e cívico. A independência do líder, não baseada na força, conduzira a comunidade ao escalão mais elevado da cidadania. Morreu Péricles. Atrás dele, vieram os fala-barato. Aqueles que controlavam a Assembleia apenas pelos seus dons oratórios. E que, por isso, estavam sempre dependentes da eventualidade de surgir outro fala-barato com ideias momentâneamente mais agradáveis. O resultado foi catastrófico. A guerra do Peloponeso foi perdida. O governo passou de democrático a oligárquico. E Atenas perdeu o seu brilho para sempre.

Aprendemos com a análise desta situação, vivida lá longe, há tanto tempo. Quem devemos apontar como últimos responsáveis da evolução descrita? Os fala-barato da Assembleia - na altura, a democracia era directa, não representativa, e todos os cidadãos (cerca de 35.000) tinham assento na Assembleia - ou os próprios cidadãos? Não é fácil fazer a escolha. Por um lado, aqueles que ambicionam o Poder, não agem com a boa intenção do serviço público. Querem o Poder pelo Poder. Pelos seus privilégios e pelas suas prebendas. Por outro lado, os eleitores - os cidadãos - elegem não em função do necessário mas em função da ilusão. Todos são responsáveis, em minha opinião. Uns vendem a inteligência ao diabo para conquistar os seus objectivos pessoais. Outros deixam-se guiar pelas miragens em lugar de tentarem atravessar o deserto, O resultado será a perda de todas as guerras em que a "cidade" se envolva. Tanto as de sentido restrito, com armas, como as de sentido lato, as sociais, económicas, educacionais, culturais. O destino será o de Atenas. Definhar, até ao completo desaparecimento.

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Estamos a assistir, em Portugal, a um processo em tudo semelhante ao descrito. Não conseguimos ainda perceber. Mas a nossa Pátria está a desaparecer. Claro que nos vamos dissolver - mais por razões geo-estratégicas de que por nosso mérito ou vontade esclarecida - numa Europa mais vasta. Mas aí seremos, neste caminhar, uma espécie de região mirandesa, onde se levam as cabras a pastar. Onde se vive em tugúrios. Onde os endinheirados europeus irão, com as crianças pela mão, para mostrar "como era antigamente". Pomposamente, os pobretanas deste canto sorrirão, mostrarão as suas feridas, convencidas de estar a desempenhar o inestimável papel de guardiãos das tradições, De algum modo, ainda continuamos a pensar e agir como no tempo da ditadura. Uma casinha, o pão sobre a mesa, o pai a regressar do trabalho, estourado, quando a noite cai e todos a rirem-se, felizes, com os arrotos que o pai dá no fim do jantar. Isto enquanto houver pão. Porque pode ser que ele acabe. Devorado pelo desemprego. Na corrida do desenvolvimento que a criação da União Europeia provocou, já levamos várias voltas de atraso. Ou reganhamos, todos, em conjunto, forças para recuperar, venham elas de onde vierem, ou só nos quedará, como recurso, entrar para o carro-vassoura.

Portugal está desunido. Não há objectivos comuns. Cada um, cada grupo, tenta arrepanhar para si o pedacito de calor que algumas brasas ainda dão. E, assim, não há forças que nos levem ao pelotão da frente. Dois exemplos, cada um do seu lado da dicotomia tucididiana acima referida, mostram o que afirmo, sem margem para dúvidas.

Ferro Rodrigues foi a Toronto. Onde o Primeiro Ministro não foi na sua recente visita ao continente americano. Toronto foi, como sabemos, uma das cidades duramente atingidas pela pneumonia atípica. E onde vivem muitos portugueses. Na sua deslocação, Ferro Rodrigues teve, claramente, dois objectivos. Um essencial. Outro instrumental para conseguir o primeiro. O essencial, pessoal, secreto, inconfessado, é o desejo latente de conseguir aceder ao Poder, um dia. O instrumental foi uma patética demonstração de coragem solidária, para funcionar como contraponto à tibieza presumida de quem detem o Poder. Uma fantochada, foi o que foi. No fim, uma atitude a contribuir para uma ainda maior desunião entre os Portugueses. Basta atentar nas dificuldades que colocamos à entrada, no nosso território europeu, aos portugueses vindos daquela banda enquanto a epidemia grassava à rédea solta. Sem que, na circunstância, o generoso, corajoso, solidário Ferro tivesse erguido a sua voz. Como dizia Tucídides, Ferro agiu em função do que pensa agradar ao Povo. Quer antes, quer depois. E tentou fazer de um grão de areia uma granada de canhão. Mesquinho.

A Ministra das Finanças (e, portanto, o Governo) está em palpos de aranha por causa do Pagamento Especial por Conta (PEC). Todos que me lêm aqui sabem que sou contra o PEC. Não apenas de agora. Mas desde que Sousa Franco decidiu introduzi-lo subrepticiamente, com valores irrisórios. Mas o que a Senhora Ministra fez com os taxistas foi desunir os Portugueses. Verdade que não terá cedido grande coisa. Porventura, os compromissos que assumiu com aqueles nem serão para cumprir. Mas, objectivamente, desuniu. Fez parecer que, para o Governo, há uns que são mais iguais do que outros. Agiu em função do que pensava agradar ao Povo e não como a situação exigia. Como Sousa Tavares disse, num pensamento brilhante que deu à estampa, "desgraçado do cidadão que não tenha um táxi ou um tanque" para ir à entrevista com o Poder.

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E agora? Com o acordo ou desacordo de quem quer que fosse, a Senhora Ministra só tinha uma de duas coisas a fazer:

- ou arrostava com todas as consequências da sua decisão de levar o PEC para a frente, já que até um leigo como eu sabia que a decisão ia ter consequências pesadas;

- ou, pura e simplesmente, abolia o PEC.

Dir-se-á que a segunda solução não era possível, dado o estado das finanças públicas. E, portanto, inexequível. Permito-me discordar. A abolição do PEC teria que dar lugar, naturalmente, a uma receita de substituição. Julgo que a melhor alternativa seria a fixação de uma colecta mínima, um pagamento suplementar, irrecuperável, a prestar por todos os entes fiscais, individuais ou colectivos.

É uma ideia altamente discutível, esta. Provavelmente geradora, também, de conflitos sociais. Mas julgo que comporta duas ou três virtudes inestimáveis.

Em primeiro lugar, acho que, mais tarde ou mais cedo, vamos chegar a esta medida. Cada decisão fiscal recente - com exclusão da reforma do Imposto de Sisa - tem apenas incrementado o incentivo à evasão fiscal. O desequilíbrio orçamental continuará a aprofundar-se. E não há outra hipótese. Nenhum governante, nenhum mecenas, vai colocar dinheiro nos cofres do Estado para substituir a receita fiscal necessária. Inexoravelmente, serão os cidadãos a restabelecer o equilíbrio. Admitir que assim não será, ou que a presente situação poderá manter-se por muito mais tempo, é pura ilusão. A qual, quanto mais durar, mais difícil tornará o futuro.

Em segundo lugar, é verdade que um imposto tal é uma espécie de "imposto de palhota", de que já uma vez falei nestas colunas. Mas no aglomerado de "aldeias" em que Portugal está transformado, talvez não possamos ambicionar ter algo mais perfeito. Com a vantagem de ser um imposto com pagamento fácil de controlar. É só ir ver à ficha quem pagou e quem não pagou. E creio mesmo mais. É que se a medida fosse levada suficientemente longe, poderia mesmo conceder a governantes interessados no bem público uma moratória, a qual lhes permitisse reformar todo o sistema fiscal. Um risco apenas. O da eternização do "imposto de palhota". O que poderia ser conseguido pelo estabelecimento de um prazo de vigência - digamos dois anos - assumido por unanimidade pelo Governo, Parlamento e Presidência da República.

Em terceiro lugar, uma medida assim teria a virtude de unir os Portugueses. Nem que fosse por estarem todos contra o Governo. E, também, porque, em tal imposto, ninguém sairia privilegiado.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 12/7/2003

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