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22.9.10

MEMÓRIA

IR NO EMBRULHO


Há uma razão para que sejamos todos a suportar as consequências do desequilíbrio orçamental na qual os portugueses parecem - ou não querem - reparar. Chama-se responsabilidade colectiva. Em democracia, não há volta a dar. Quando as coisas não correm bem, a responsabilidade é de todos. É por isso que é imensamente mais fácil viver em ditadura. Em ditadura a responsabilidade é sempre "deles". Em democracia não há "eles" e "nós". Somos todos nós. Os Portugueses aceitaram as prerrogativas da liberdade conquistada no "25 de Abril". Mas não têm sabido - ou querido - aceitar-lhe a responsabilidade. Quantas vezes se ouviu dizer que estávamos a viver acima das nossas possibilidades? E quantos souberam escutar e corrigir a trajectória? Quantas vezes se disse que estávamos a viver o doce engano dos dinheiros que vinham da Europa e que ia ser o bom e o bonito quando estes começassem a escassear? E quantos utilizaram esses dinheiros de forma produtiva, de modo a acrescentar a riqueza colectiva? Sejamos claros: o défice financeiro e económico em que nos encontramos tem origem nos milhões de milhões, oriundos da Europa e dos nossos impostos, que foram mal gastos, esbanjados, estropiados, ilegitimamente embolsados por uns tantos. E assistimos a tudo isso sem nos rebelarmos. O tempo era de vacas douradas. Todos comiam. Porque havíamos de preocupar-nos se, ainda assim, sobejava para todos nós? A factura chegaria um dia. Chegou. Tenho mesmo a convicção de que ainda estamos só na presença de uma factura parcial, espécie de pagamento intercalar. Que ainda virá a factura definitiva. De qualquer modo, chegou a primeira. E a factura tem um destinatário. Nós todos. Pagá-la-emos, sem apelo nem agravo.

Alguns dirão que a responsabilidade não é colectiva. "A culpa é dos políticos!". É um comportamento aflitivo, este. Porque se assemelha muito ao da criança apanhada em falta. "A culpa é daquele menino!", é a primeira tentação da criança que cometeu uma falta e teme o castigo. Esquecemo-nos de que fomos nós quem escolheu os políticos que temos. Esquecemo-nos que escorraçamos, todos nós, alguns que provaram ser óptimos governantes. Há frases que parecem anodinas e que são tão importantes! Só que as não escutamos. O malogrado músico, poeta e cançonetista Carlos Paião tinha, aí há uns quinze ou vinte anos atrás, uma canção na qual havia um verso que queimava como fogo. A canção falava de santos populares. E, a certa altura, dizia o poeta: "…pobre Zé, que foste no embrulho uma vez mais!". Desde que a madrugada libertadora passou, ainda não deixamos de ir no embrulho. E ir no embrulho é um pouco como no conto do vigário. Não é o vigarista o único criminoso.

Podíamos arregimentar uma boa mão cheia de exemplos da responsabildiade que temos na situação a que se chegou. Peguemos num. Por volta de 2000, o Estado utilizava um número elevado de contratados a recibos verdes. A situação era relativamente injusta. Havia duas qualidades de funcionários públicos. Uns, com direito a trabalho vitalício, a reforma por inteiro, a nome inscrito no quadro da repartição. Outros, a trabalhar duro, sem saber qual seria o seu destino. Verdade seja que a expectativa - é bom falar em expectativas quando o Erstado se prepara para frustrar as expectativas de milhões de cidadãos seus - de tais funcionários era a de, logo que não fossem necessários, verem o vínculo cessado. Havia duas maneiras de resolver a situação, pelo menos. Ou o Estado reformava a administração pública, de modo a prescindir dos funcionários excedentários, ou admitia-os como funcionários de pleno direito. Todos nos recordamos do que sucedeu. Os interessados, os sindicatos da função pública e muitos dos funcionários públicos efectivos juntaram as suas reivindicações, no sentido de que deveriam os contratados a recibo verde ser integrados nos quadros. Foram milhares. De que se queixam agora os funcionários públicos? O bolo não chega para eles e para os integrados. Há que repartir entre todos. Talvez os sindicatos que fizeram força para a integração dos contratados a prazo queiram, agora, substituir-se ao Estado e garantir a todos o que o Estado não pode pagar-lhes. É que, neste caso, fico sem saber quem levou o Zé no embrulho.

São sem número os casos de que poderíamos falar. O rendimento mínimo garantido. Pedra de toque e jóia rutilante de um político a quem decidimos colocar no Governo da nossa vida. Uma promessa cumprida. Uma promessa que tinha colocado lágrimas de compaixão nos nossos olhos. Creio que já contei aqui o caso daquela senhora que procurava trabalho doméstico em minha casa. Quando lhe perguntei onde tinha trabalhado anteriormente, a resposta foi paradigmática: "nos últimos anos não trabalhei porque estava no rendimento mínimo; só que ele vai acabar e tenho que arranjar trabalho". Naturalmente, na minha casa não arranjou. E eu fiquei com a sensação de ter ido no embrulho uma vez mais.

Leis permitem que um senhor - chame-se ele Mira Amaral ou Campos e Cunha - tenha uma reforma dourada por meia dúzia de anos de trabalho numa instituição. Claro que ele tem direito. Se está na lei, ele tem direito. Tanto quanto um pedreiro ou um jornalista ou um funcionátio público têm direito ao que está na lei. Mas a instituição onde o absurdo foi concebido e passado a letra de lei não era instituição sem dono. E um dos donos, porventura o mais importante, senão único, era o Estado. Porque deixou passar a lei? Num momento em que esse mesmo Estado nos pede para apertar o cinto até a fivela tocar na fivela, temos razão para sentir que fomos no embrulho.

Por força do que digo e muito mais, havemos de chegar a uma conclusão verdadeiramente atordoante. É que o nosso país está dividido em duas classes de pessoas. Os embrulhadores e os embrulhados. Sendo que os universos não são estanques. Ora se está num grupo, ora se está no outro. Perdão. Falta-me uma classe. A qual, nem por ser relativamente diminuta, deixa de ter a sua quota parte no fenómeno do embrulho. Os profissionais da comunicação. Os desembrulhadores. Está a gente muito quentinha, embrulhada no último embrulho - que eles, aliás, ajudaram a atar - e vêm eles cortar-nos o calor. Vieram, agora, todos ufanos, denunciar a reforma do João Jardim. Acho que ele, João, tem razão em irritar-se. É que não é o único. Aqui há uns meses - e só para citar um exemplo - Narciso Miranda, Presidente da Câmara de Matosinhos, reformou-se. Douradamente. Cerca de 3.000 euros por mês, por cerca de trinta anos de serviço. E continuou como Presidente da Câmara de Matosinhos. Tudo legal. Mais. Faz esforços inauditos por ultrapassar um momento de grande azar e voltar a ser Presidente. A Comunicação Social - com a gratificante excepção de um órgão da imprensa regional - calou-se bem calada. Quem sabe se, se tivesse então feito algum ruído, conseguiria que Alberto João não avançasse com a sua reforma tempos depois?

Portanto, meus Caros, paguemos e não bufemos. Afinal, somos todos responsáveis. Uns, porque embrulham. Outros, porque se deixam ser embrulhados. E uns poucos porque ajudam a embrulhar para, depois, terem o prazer de desembrulhar. Algo fica de muito preocupante de tudo isto. É que, com tanta gente a reformar-se, embora ainda no activo, eles - pessoas geralmente bem informadas - devem estar convencidos que o regime está nas últimas e estão tratando de agarrar os botes ainda disponíveis, antes que o barco vá mesmo ao fundo.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 5/6/2005

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