O INTERESSE DA HISTÓRIA
Estávamos ali pelos meados dos anos oitenta. Eu trabalhava no gabinete de estudos do Banco Português do Atlântico. Integrada num programa qualquer de intercâmbio escolar, uma recém-licenciada belga – creio que se chamava Geneviève – estagiava no gabinete. Naturalmente, nas horas livres em que nos empenhávamos em acompanhá-la, discutiam-se as respectivas realidades nacionais. Por cá, os efeitos do desenvolvimento económico ainda não se faziam sentir. Portugal vivia as dificuldades da primeira metade daquela década. O nosso subdesenvolvimento impressionava a técnica belga. Era para ela, oriunda de um país ainda mais pequeno do que Portugal mas desenvolvido, incompreensível o estado em que nos encontrávamos. Confesso que as suas observações depreciativas incomodavam o meu sentido e o meu orgulho pátrios. E, num dado momento, falho já de argumentos actuais, não resisti ao apelo de comparar as nossas Histórias respectivas, para lhe dar conta das enormes, gigantescas, realizações que havíamos concretizado no passado, algo de que os belgas não podiam orgulhar-se. A resposta dela deixou-me sem palavras de resposta:
- Que interessa ter uma História assim se o povo não é feliz presentemente?
O episódio, perdido nos baites da minha memória, veio subitamente à superfície quando assisti, interessado e atento, às celebrações do Centenário da República. Feita de palavras, naturalmente, que a ocasião era para isso. Palavras recheadas de ideais, na voz de todos os oradores. A liberdade. O desenvolvimento. A descentralização. A educação. A soberania popular. O patriotismo. Por momentos, a minha alma baloiça contente na fátua ideia da Pátria doce, acolhedora, justa, feita pelos e para os cidadãos. Mas, sem querer, os oradores contradizem-se e despertam-me para a realidade. Não sei bem qual foi o retinir que me despertou. Talvez tenha sido logo no início, quando o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, depois de acentuar como ideal da República a descentralização, cita os revolucionários e a edilidade lisboeta na celebérrima proclamação, dizendo:
- Cidadãos de Lisboa, a Câmara saúda-vos!..
Poderiam os revolucionários ter dirigido a saudação aos Portugueses. Mas não o fizeram. Ao fim de cinco minutos de existência, a República começava a negar os seus próprios ideais e a instalar uma ideia que ainda hoje se mantém, apesar da renovação do “25 de Abril” e um século passado: Portugal é Lisboa e o resto é paisagem.
Mas não se ficaria por aí o despertar. O Doutor Santos Silva, presidente da Comissão das celebrações do Centenário, é uma personalidade de indesmentível seriedade. Que demonstra em algumas afirmações. “A esperança regeneradora da República foi largamente frustrada”. “A República trouxe o parlamentarismo e o partidarismo” mas também trouxe “o clientelismo”. “Os mais novos não se interessam pela História nem pela vida política”. “O impulso inicial (do “25 de Abril”) foi-se perdendo na última década”. Quase sem querer, relacionou porventura a raiz dos nossos males actuais. Uma raiz entrançada, interligada, por onde é difícil absorver a seiva regeneradora. De formação profissional financeira, reduz tudo à análise do balanço. “O balanço da República é francamente positivo”. Mas ele sabe, eu sei que sabe, que quando uma empresa entra na via do descalabro, perde o crédito, a situação líquida entra no negativo, a falência passa a ser técnica, depressa se transformando em falência absoluta.
Mas o mais sério ficaria reservado para a segunda metade. Com as intervenções do Primeiro-Ministro e do Presidente da República. Eu já me custa ter de comentar algo que o Primeiro-Ministro diga ou faça. Sobretudo, que ele diga. Interrogo-me mesmo se não estarei a ser parcial, a dar apenas azo à manifestação de uma antipatia pessoal nascida de uma não adesão permanente às suas teses. Mas não consegui ver mais do que o costume. Um discurso inflamado, bem construído, mas falso como Judas. Se fechasse os ouvidos a uma ou outra referência à efeméride, diria que todas as qualidades que ele retoricamente atribui à República não passam da repetição exaustiva das “qualidades” que, reiteradamente, tem atribuído a si próprio, ao seu Governo e à sua obra. O esforço de identificação passou das marcas. Tanto que, tendo começado por falar “deles”, os republicanos, rapidamente passou a dizer “nós”. Uma peça de retórica política inigualável. Usando todas as técnicas demagógicas. “A melhor forma de celebrar a República é confiar em Portugal e nos Portugueses”. Uma confiança que ele repete pelo menos quatro vezes por semana. Porventura à espera de conseguir, assim, o que não consegue com os seus actos, a confiança de Portugal e dos Portugueses na sua governação. A melhor forma de celebrar a efeméride seria repassar os erros da I República, falar neles desalmadamente, tentando evitar a sua repetição. Mas nem ele nem ninguém estão muito interessados em falar nisso, esquecendo-se que o surgimento de Gomes da Costa, de Salazar e de uma época negra se ficou devendo precisamente, ó ironia, ao descalabro das finanças públicas na I República. “O patriotismo obriga-nos à convergência”. Palavras que quase ferem, quando nos recordamos que quem diz isto é a mesma pessoa que afirmou: “apesar de minoritários, é o nosso programa que vamos realizar e não o programa dos outros”. Observações que coroa – perdoe-se a referência monárquica – com uma afirmação de antologia retórica e, ao mesmo tempo, tão verdadeira nos tempos actuais: “(somos um país)com projecção ímpar no mundo”. Somos, indubitavelmente. E mais, a ele o devemos. Todavia, projecção ímpar por razões que envergonham. É a irresponsabilidade.
Parece que o Presidente da República tinha lido antecipadamente o discurso do Primeiro-Ministro e decidiu fazer o contraponto. Falou precisamente da responsabilidade de todos nós. E não se coibiu de acentuar que essa responsabilidade era particularmente grave para os agentes políticos. De onde tem de, naturalmente, jorrar o exemplo. E faz uma afirmação lapidar: “o que interessa não é a discussão entre os políticos, é a vida concreta das pessoas”. Colocando, de imediato, o dedo acusador no discurso antecedente do Primeiro-Ministro, com a recusa das intervenções arrebatadas daqueles na praça pública. Tínhamos justamente acabado de assistir a uma delas. Ele sabe, eu sei que sabe, que a “verdade e a transparência do serviço público”, por ele pedidas, nunca foram tão ausentes e opacas.
Feita a súmula de tudo quanto foi ouvido, fica-se com um espinho espetado na consciência. Por um lado, a verificação da tarefa ingente que se nos coloca pela frente quando a gente que temos não parece capaz do clique necessário para arrancar. Por outro lado, a afirmação final do Presidente da República, tentadoramente mobilizadora, colhida na História que deixamos para trás: “Portugal sempre foi maior quanto maiores foram os desafios”. Mas, como disse a Geneviève, que interessa a História se o importante é a gente?
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 7/10/2010
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