O PRÓXIMO ANO
Um Natal mais a ficar para trás. Só agora, depois de muito já, é que entendo porque é que o meu avô, quando lhe perguntavam a idade, sempre dava a resposta em Natais contados. Quando chega ao fim, cada Natal sempre me deixa a sensação de algo perdido para sempre. Não sei se por força de se ter transformado em passado, se por ter sido mal aproveitado. Não é, com certeza, uma sensação apenas minha. Estou mesmo convencido que é tão universal o sentimento, que os homens acharam por bem não colocar o início de um novo ano não muito longe do Natal. A esperança pelo novo ano despertada é um antídoto razoável para a sensação de solidão deixada pela passagem do Natal.
No entanto, no primeiro dia de Janeiro do ano que aí vem, o mundo vai estar igualzinho ao da véspera. O sol, mais nuvem menos nuvem, vai nascer apenas um minuto mais cedo. No Afeganistão, as armas vão continua a emitir passaportes para viagens sem regresso. Em lugares que mais parecem sarjetas de uma sociedade que se diz civilizada e não pré-histórica, continuarão a morrer milhares de crianças filhos de uma vida madrasta. Aqui e além anonimamente, pela calada da noite da humanidade, talvez se ouça ou uma outra bomba a estoirar. Os mercados financeiros continuarão presunçosamente a ensinar aos governos como é que se governa. Não se ficando por aí. Desmentirão, pela manhã, os retóricos da véspera à noite. Por cá, continuaremos a ver o défice orçamental a agravar-se, a dívida a crescer, os impostos a aumentar, o rendimento a diminuir. Para que tudo seja mais igual, até conservaremos o Chefe do Estado. Já o mesmo talvez se não possa dizer do Primeiro-Ministro. Mas não é este um prognóstico certo. Porque, para que este Primeiro saia haverá de haver outro que queira ocupar o seu lugar. E não se vê grande vontade. Não haverá crescimento do desemprego nesse primeiro dia do ano apenas porque é feriado e as empresas nem despedem nem fecham quando estão fechadas. Vão enterrar-se alguns portugueses, enquanto nascerão outros, em contrapartida. Todos, os mortos e os nascidos, com direito a notícia no jornal, aqueles a pagar, alguns destes à borla. Aliás, neste domínio, há um fenómeno curioso. Nenhum periódico publica, nem mesmo entre os anúncios das casas de massagens ou dos desabafos sentimentais, notícia sobre a última pessoa a nascer num determinado ano; mas todos dão notícia do primeiro a nascer no novo ano. Começam logo aí as desigualdades sociais. Inimputáveis. Nem ao capitalismo liberal, nem ao socialismo democrático, nem ao comunismo totalitário. Não passam de míseras desigualdades sociais assentes no calendário.
Não obstante o mundo do primeiro dia de Janeiro ser praticamente igualzinho ao mundo do dia trinta e um de Dezembro, nós temos esta mania de atribuir à meia-noite que separa os dois um significado especial. Custa-me sempre muito a compreender o porquê desse significado. Ainda se a passagem de ano fosse aquela que a cada um faz entrar num novo ano de vida ou fosse aquele momento mágico em que, acompanhando a eterna viagem da Terra, cada um de nós completa uma volta em redor da luz que nos alumia, ainda vá que não vá. Agora assim, uma data, um dia só, para todos, que estranha coisa. Não consigo encontrar explicação para este fenómeno que nos faz ter esperanças ou desesperos todos ao mesmo tempo.
Vem a talhe de foice dizer que esta passagem que aí vem parece ser mais propícia a desesperos do que a esperanças. Isto, não obstante o esforço hercúleo que o nosso Primeiro faz todos os dias para que os termos se invertam. Em vão. Felizmente, os políticos ainda não têm o controlo dos nossos pensamentos nem sobre isso podem fisicamente cobrar imposto. Não estou seguro se será sempre assim. Que os pensamentos não paguem imposto. Penso mesmo, enquanto o pensamento é disso isento, que um dia chegará em que acontecerá. Mas estou seguro de que ainda não será este ano. Falta aquilo a que chamo o “pensómetro”, um aparelho electrónico, da laia daqueles que foram instalados nas SCUTS, que mede a nossa actividade cerebral e debita os impulsos directamente no nosso cartão de crédito. Os avanços tecnológicos são, porém, muito rápidos neste domínio e não deveremos estar longe IPA, Imposto sobre o Pensamento Acrescentado.
Algo em que pensei também, nestes dias, foi encontrar um nome para o ano que aí vem. Os chineses fazem-no e a China prepara-se para governar o Mundo, pelo que o melhor é a gente ir-se habituando aos seus hábitos. E o nome mais apropriado que consegui encontrar foi “o ano da encruzilhada”. Porque é uma difícil encruzilhada que teremos pela frente, no próximo ano. Uma encruzilhada de duas estradas apenas. Ambas feitas de pedra dura, desnivelada, agrestes, eriçadas de espinhos. Mas com uma diferença fundamental entre elas. Enquanto uma tem uma saída, longínqua mas uma saída, a outra é uma espécie de espiral sem fim, apenas nos fará andar às voltas sem nunca sair do sítio. E o problema de um ano assim é que vamos ter de ser nós a decidir. Primeiro, porque não é bom deixar os outros decidir por nós. Segundo porque a experiência denota que os que têm decidido por nós sabem menos do caminho do que nós. Seremos nós capazes de, nesta encruzilhada, escolher a boa estrada?
Pode ser que sim, pode ser que não. Ai de nós se não! Não estamos em condições de dar passos em falso. Donde, nesta fantasia formal que é a passagem de um ano para outro quando os dois se não distinguem, eu lhe desejo algo de que vai precisar muito, meu Caro Leitor: bom senso. Vai precisar de carradas dele. Porque, se julga que já passou por tudo neste ano que vai terminar, desiluda-se. O próximo ano vai trazer-lhe muitas novidades. Todas más. Depende do seu bom senso evitar que sejam piores. Isto é, o seu Ano vai ser tão Bom quanto o meu Caro Leitor merecer.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 30/12/2010
1 comentário:
Brilhante texto!!!
Não me sobraram palavras para um comentário.
Sua colocação é perfeita, consciente, de um homem inteligente, com uma visão política exarcebada, com os pés e o juízo alicerçados num mundo materialista, desumano, indiferente aos olhos da cidadania.
Não devemos nos ater somente no dia primeiro de janeiro, pois todos os anos, obrigatoriamente,
temos que passá-lo. Não concentremos as expectativas para este dia. Todos são iguais.
O ser mutável somos nós. As mudanças dependem, única e exclusivamente, de nós.
A cada manhã o sol nos besunta com seu calor. Acendamos a chama da prosperidade, da generosidade.
Se tivermos que dar um abraço no pai, irmão, amigo, que façamos agora!
Se tivermos que alimentar um faminto, que façamos já!
Que dia especial é esse que, enquanto nossa mesa está farta, outras estão ‘a mercê de migalhas.
Que dias são esses que, enquanto nossos filhos, quando não nos intimam a ganhar presentes, outras criaturas, abandonadas, relegadas pela sorte e pela omissão dos homens, não recebem nada.
Deixemos a hipocrisia de lado. Amar não é ato egóico.
Amar é um verbo plural.
Cida
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