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13.7.11

MEMÓRIA

IRRESPONSABILIDADE ILIMITADA

Já lá vão uns bons quinze anos. Chamava-se João Cebola. Julgo que ainda se chama, embora já não o veja há muito. Era engenheiro por formação e gestor por profissão. De uma empresa meio falida. Aliás, falida em mãos que não haviam sido as suas. Era conhecida em todo o país pelo nome de Oliva. Começara por fazer, com grande sucesso, máquinas de costura para donas de casa sem profissão. Que o andar dos tempos tornou obsoletas. As donas de casa sem profissão e as máquinas de costura domésticas. A Oliva viveu tempos dramáticos. Com graves reflexos sociais em S. João da Madeira. O engenheiro João Cebola tinha sido o último a chegar. Com pouco dinheiro e muitos trabalhadores. Um dia, a Segurança Social detectou que a Oliva não entregava as contribuições que lhe eram devidas. Nem mesmo as retidas aos trabalhadores. E decidiu accionar um Decreto-Lei que fora publicado ja há bastante tempo, mas que permanecera no limbo. Havia montões de gestores de empresas que não entregavam as contribuições à Segurança Social. João Cebola - se outro não foi o motivo - foi escolhido para exemplo. E foi detido por isso. Foi colocado em liberdade alguns dias depois, para aguardar julgamento. No qual terá feito prova de que tivera que optar entre pagar aos trabalhadores ou pagar à Segurança Social. Não tinha dinheiro para os dois. E foi absolvido. Mas ninguém lhe tirou mais, por impossível, os dias que passou no cárcere.

Passaram quase duas décadas. O Decreto-Lei continuou no limbo, tanto quanto sei. Ressurgiu agora, com a violência de um tsunami. Em Portugal é assim. Décadas sem fazer nada. O Estado. Na hora do aperto, com a cegueira própria da necessidade imperiosa, vai tudo a eito. Justos e pecadores. Às malvas os justos. Até prova em contrário, todos são pecadores. Este Estado é um malfeitor. Ou melhor, o Poder que encarna o Estado é um malfeitor. Com uma agravante recente. É que tem paulatinamente retirado ao cidadão os meios de defesa expeditos que já teve no passado. É caso para dizer que o polícia se transforma em ladrão. E, quando isso acontece, estamos perdidos. Vamos trocar isto em miúdos.

A não entrega das contribuições devidas à Segurança Social é, obviamente, um acto a merecer punição. Mas, cuidado, apenas no caso de não ter justificação (no que esta palavra tem de sentido de justiça). É que essa não entrega pode ser devida a muitas razões. E se algumas dessas razões não têm perdão, muitas há que são justificáveis. Comecemos pela própria natureza do nosso ordenamento jurídico-comercial. Há sociedades de responsabilidade limitada. Aprendi na faculdade que tal figura havia sido criada para fomentar a iniciativa económica, permitindo-a também àquelas pessoas que não queiram arriscar nos negócios senão uma parte do seu património. Ora, a não entrega das contribuições à Segurança Social pode ser devida ao simples facto de que não há dinheiro para issona empresa. Mesmo que haja no bolso dos seus proprietários e gestores. O gestor, confrontado com tal situação, opta pelo que a sua consciência manda. Tal como fez o engenheiro João Cebola. Claro que o não pagamento ao Estado configura uma situação de ruptura de pagamentos, logo, de falência. Mas todos sabemos que há casos e casos. Não é a primeira vez que uma empresa na situação de falência consegue recuperar. O Estado geme. Publica lei a tentar forçar a consciência do gestor. É uma lei iníqua. Feita por quem, sentado nos cadeirões do Poder, tem o ordenado sempre pago antes da hora, tem mordomias que não existem em muitas dessas empresas. Feita por quem, porventura, nunca teve que gerir uma empresa e a quem deram o poder de gerir a maior de todas, o País. Este Estado é uma irresponsabilidade. Ilimitada. Este Estado é malfeitor.

Também sabemos que há muitos tipos de falência. Há as honestas e as desonestas. Nestas últimas, ainda há as com dolo e as por incúria. Pois bem. Que paguem as contribuições do seu bolso os gestores das falidas desonestamente. Nada a opor. Mas ninguém salvaguardou isso na Lei. Mede-se tudo pela mesma bitola. E o princípio é "primeiro paga e depois reclama". Este Estado é malfeitor. Ao fazer uma exigência de pagamento fosse a quem fosse, o Estado deveria ter que fazer aquilo que qualquer credor tem que fazer. Provar que o devido lhe é devido e quem é que realmente lhe deve. Isto sim, seria próprio de um Estado de direito. Praticamente em todo o mundo, com excepção das repúblicas das bananas. Com um comportamento como aquele que agora vem anunciado, de cobrança coerciva de contribuições para a Segurança Social directamente do bolso dos gestores, o Estado Português coloca-se, inexoravelmente, ao lado das repúblicas bananeiras.

Face à emergência das contas públicas, o Estado porventura se justifica com a emergência. Não tem tempo para ir a tribunal. E que culpa disso têm os gestores honestos ou as empresas tidas por devedoras sem dever? Pois se até é ao Estado que cumpre fazer funcionar a justiça com celeridade! Demora, mas que vá a tribunal. Talvez assim aprenda que um dado gestor não pagou as contribuições para a Segurança Social, atempadamente, porque a Justiça que o Estado lhe dá não lhe permitiu cobrar, em tempo, um crédito que ele tinha sobre outra empresa. E que, quando a morosa Justiça dada pelo Estado chegou à conclusão do seu caso, já o devedor não tinha cêntimo por onde se lhe pegasse. Tudo isto sem que ele ficasse com o direito de accionar os gestores da outra empresa. Este Estado é um malfeitor. Pode muito bem acontecer que a culpa do "crime" de não entrega das contribuições pertença, em última análise, ao próprio Estado. Mas isso atira-se para trás das costas. É o que faz qualquer malfeitor em questões de consciência.

Perante tanta malfeitoria, uma questão, acerada como adaga, espicaça-nos a alma. A emergência das contas públicas, que está na origem de todas as injustiças de que os cidadãos vêm sendo objecto, é devida, sobretudo, à má gestão da coisa pública por muitos dos políticos que tivemos no passado recente. Porque é que este Estado, tão apressado nos gestos que nem mesmo se incomoda por praticar injustiças, não envia cartas a todos os responsáveis políticos do passado que, notoriamente, contribuiram para este estado de coisas? Só não digo para começar em Vasco Gonçalves porque o pobre já morreu. Mas ainda temos tantos! Mário Soares, por exemplo. Beneficiário, na sua fundação, de milhões de euros sem que se saiba para quê. Ou melhor, sabe-se formalmente mas não se entende realmente. E pode continuar-se, logo de seguida, com o "mãos-largas" do engenheiro António Guterres, que esbanjou - ou permitiu que se esbanjasse - o relativo equilíbrio herdado do seu antecessor. De algum modo, isto seria uma extensão da aplicação da Lei que o Estado está a usar para com os gestores. Extensão que eu julgo de uma lógica inatacável. O Estado não é o Governo. O Estado somos todos nós. E o Estado foi levado à margem da falência - que justifica todas as arbitrariedades - por gestores no mínimo incompetentes. Na senda da atitude agora assumida pelo Governo, o Estado pode começar a enviar cartas a todos os governantes para que reintegrem os cofres do Estado com o que esbanjaram. À custa, naturalmente, do seu património pessoal. Pois não é isso que os actuais intérpretes estão a fazer com o cidadão comum? E qual é a diferença entre um cidadão comum e um gestor do Estado? Nenhuma. A não ser o Poder. Mas todos temos o dever - não o direito, o dever! - de resistir ao Poder discricionário. Eu, pelo menos, não quero fazer parte de qualquer bando de irresponsabilidade ilimitada.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 20/7/2006

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