...
Ouvimos o Daniel falar do trabalho como a coisa mais natural do mundo. Nunca ouviu falar de trabalho infantil. De que é um dos exemplos. Reparte o seu tempo entre a escola, os deveres trazidos para casa e a guarda das vacas da família. A quem alimenta com devoção. Para ele, a ração das vacas tem que ser suficiente. Estas têm que deixar ainda alguma no comedouro, o que é sinal de estarem bem alimentadas. Ele sabe, por intuição ou ouvir dizer, que as vacas são a única riqueza da família. Sabe que a existência dele, da irmã, da mãe e do pai depende, em grande medida, das vacas. Com à vontade, considera importante a sua função de guardador de vacas. A ponto de se propor ensinar ao seu ídolo Mantorras o ofício, se este o ensinar a jogar futebol. De olhar maroto a brincar no canto dos olhos, fala das vacas com o entusiasmo com que um astrónomo fala das estrelas. Daniel substituiu a brincadeira própria dos seus tenros anos pelo trabalho. Que assume como um dever quase lúdico. Sem horários. Sem férias. Sem intervalos para ir à casa de banho. Sem greves. Sem abonos para profissão de risco. Sem reivindicações. Sem azedume. Sem reclamar. Nos seus verdes anos, o Daniel é um dos melhores trabalhadores do nosso país.
Ouvimos a irmã do Daniel. Pouco mais de dez anos em corpo de menina. A mesma dedicação ao trabalho, na ajuda da mãe, no tempo que a escola deixa livre. Com uma clareza imprópria de tão poucos anos, assume com responsabilidade a obrigação de trabalhar, de ajudar a mãe, de estudar. Sem estudos nem agricultor se pode ser, diz ela. Por intuição ou ouvir dizer, também, a irmã do Daniel sabe mais das necessidades do futuro do que a generalidade dos trabalhadores sindicalizados do meu país. Sabe que brincadeira só é admissível depois de todos os deveres terem sido cumpridos. É preciso contribuir para as necessidades da família, diz ela. Com trabalho. A irmã do Daniel é uma das melhores trabalhadoras do país.
Ouvimos a mãe do Daniel. A clareza das suas ideias deixa-nos espantados. Como é possível ter uma visão tão clara do dever cívico, familiar, pessoal, numa aldeia perdida no interior profundo do país? Quer dar aos filhos o melhor futuro possível, quer deixá-los ir tão longe quanto sejam capazes. Mas sabe que isso só será possível com o trabalho esforçado de todos, com ela à cabeça. Quando ficamos a dever alguma coisa a alguém por termos comprado alguma coisa de que precisámos, eles – os filhos – sabem. E sabem que, enquanto não pagarmos, não pode haver prendas para ninguém. Trabalha todos os dias. Quando há uma festa num qualquer fim de semana, ou vai ela ou vai o homem. Não podem ir os dois. “Porque as vacas não fazem dieta”, diz ela. Têm que comer todos os dias, duas vezes por dia, sábados e domingos incluídos. Revê-se, com vaidade, tanto na inteligência como nas qualidades de trabalho dos dois filhos. Quando acabo de a ouvir falar, sorridente, no pequeno ecrã do meu televisor, levanto-me do sofá, inclino-me levemente, e murmuro: os meus respeitos, minha Senhora! É não só uma grande Mãe, como é uma grande Senhora, uma grande Mulher, uma grande Cidadã, uma grande Portuguesa. Os meus respeitos, minha Senhora! Ela não me pode ouvir. Mas eu fico tranquilo com a minha consciência. Porque, além do mais, neste pessimismo sobre o futuro do meu país, que por aqui vou deixando em retalhos quase todas as semanas, vejo surgir uma ténue luz. Se ainda há, no meu país, portugueses assim, como o Daniel, a irmã e a mãe, então o meu país ainda tem uma hipótese. Uma esperança. Um futuro.
...
Excerto da crónica AS VACAS NÃO FAZEM DIETA - Magalhães Pinto - VIDA ECONÓMICA - 5/1/2003
Sem comentários:
Enviar um comentário