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16.9.10

CRÓNICA DA SEMANA

O POETA

Assisti, entre o incrédulo e o divertido, aos argumentos do candidato à Presidência da República Manuel Alegre para justificar o voto dos cidadãos na sua pessoa. Tudo espremido, não fica grande coisa. Porventura porque um candidato a Presidente da República não tem muito para prometer. Basicamente, se quiser ser honesto, só pode prometer “velar pelo regular funcionamento das instituições” e “ser o primeiro fiscal da constitucionalidade das leis”. Não tendo mais nada que pudesse honestamente prometer, o cidadão Manuel Alegre, poeta por vocação, político por profissão (desde a idade da tropa que nada mais fez ou faz) e candidato à suprema magistratura da Nação por inexistência de outro mais carismático na área da Esquerda, atirou-se a uma ideia sonante mas que, pelo modo como as coisas funcionam no mundo de hoje, não passa de um eufemismo: o Estado Social.

É bom que, previamente, atentemos na subtil manobra subjacente à expressão “Estado Social”. O socialismo, totalmente desacreditado na sua expressão mais pura – a que vigorou na União Soviética, China e respectivos satélites – e ferido de morte pelos desequilíbrios provocados na sua expressão mitigada, estava carente de encontrar uma expressão que fizesse desaparecer, no subconsciente das pessoas, os atributos que o desacreditaram. E foi por isso que surgiu a expressão “Estado Social”. De um modo figurado, o socialismo foi metido na gaveta, marinou aí durante uns anos, até que os abrigados sob a sua bandeira - muitos a serem menos “socialistas” do que eu – voltaram a abrir a gaveta e, ó Deus, um milagre. O “socialismo” tinha desaparecido e surgia agora vestido de “Estado Social”.

Tido isto em conta, eis que Manuel Alegre, face à decisão do PSD de chamar os bois pelo nome, viu aí a oportunidade única de montar o cavalo da retórica, que ele domina com maestria – vestir a armadura de último guardião da solidariedade social e correr à rédea solta pelos campos de Portugal, gritando: “se alguém quer atingir o Estado social, haverá de liquidar-me, p´ra lhe fazer algum mal.” E ficamos a saber. Ficamos a saber que, se ele fosse eleito, não iria deixar passar qualquer lei ameaçadora do que ele chama o “Estado Social”. Que, como já disse, quer dizer “Socialismo”. Há duas frases que falam alto do seu pensamento. Diz ele que “Portugal não é só números nem só um manual de finança”. Acrescentando para os menos entendedores, que “o défice de Portugal é um défice social, de emprego, de justiça e de solidariedade”. E o que mais diverte nisto é que Manuel Alegre não é tonto e, por isso, sabe que está a dizer algo perfeitamente vazio de conteúdo. A primeira frase, não dizendo nada por si só, é esclarecida pela segunda; e a segunda está a falar de assuntos que não cabem ao Presidente da República. Além das duas conterem uma visão deficiente de como funciona a sociedade. O que ali está, naquelas duas frases, é a ameaça de que, se fosse Presidente, Alegre não iria permitir que o Governo, qualquer Governo de qualquer cor partidária, desse primazia ao equilíbrio das Finanças Públicas, se preocupasse com o equilíbrio económico do país. Ia ser bonito!

Vejamos. Primeiro. Se Portugal não tiver as finanças equilibradas e se não produzir tanto quanto possível o que consome, terá de fazer uma de duas coisas: ou ir buscar o dinheiro necessário aos cidadãos, apropriando uma fatia maior de uma produção já escassa e insuficiente ou terá de pedir dinheiro ao estrangeiro para que os cidadãos (e o próprio Estado, até) possam sobreviver. A primeira alternativa é alinhar por baixo a sociedade, é fazer aquilo que o Comunismo tão bem fez, diante da revolta silenciosa dos cidadãos e reduzindo à miséria a sociedade, com excepção das classes política e dos profissionais da ordem que calavam a revolta. Quanto à segunda, Quem empresta dinheiro falo com a esperança de o receber de volta. E, sem finanças equilibradas, tal esperança é muito ténue. Por isso, não há quem empreste esse dinheiro em tais circunstâncias. Todos sabemos isto pela administração das nossas casas e os Estados não se administram de modo muito diferente. Se não tivermos o orçamento equilibrado, temos de recorrer ao crédito e, esgotado este por endividamento cada vez maior, o resultado é a fome.

Segundo. O Presidente da República não tem poderes suficientes para fazer o que Alegre diz querer fazer, porventura sabendo Alegre que assim é. A Constituição teve o cuidado de impedir que o Presidente se possa sobrepor ao que o Governo ou a Assembleia da República querem. Temos visto isso com fartura. O que talvez esteja mal, na Constituição. A legitimidade democrática do Presidente é a maior de todas, dada a eleição nominal, individual, única e intransmissível de que é objecto. Mas tanto Alegre diz que não quer ver a Constituição alterada como foi aprovada por deputados de que fazia parte o mesmo Alegre, aliás como figura de proa então. Aprovada uma lei pelo Governo e pela Assembleia da República, o Presidente só consegue impedir que ela entre em vigor se ela for inconstitucional. Caso contrário, o Presidente não pode verdadeiramente impedi-la de entrar em vigor, sob pena de ser ele o provocador do irregular funcionamento das instituições de que é suposto ser o primeiro zelador.

Assim, o que Manuel Alegre está a dizer é uma de duas coisas. Ou é banha da cobra para, muito ao jeito socialista, enganar os papalvos, ou é apenas poesia, versão para a qual me inclino mais, dados os antecedentes do artista. Mas uma coisa parece ficar certa. É que, se Manuel Alegre fosse eleito e estivesse a falar verdade nestas suas intervenções, teríamos Portugal mergulhado numa crise sem fim, embora, em minha opinião, dependente da cor partidária do Governo coexistente. De alguma maneira, o candidato socialista regressou aos bons velhos tempos que se seguiram à revolução de Abril. O que também é poesia, porque já não é tempo para isso.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 16/9/2010

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