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9.12.10

CRÓNICA DA SEMANA

AS LIÇÕES DE ESPANHA

Os acontecimentos recentemente vividos, especialmente em Espanha mas afectando um pouco toda a Europa, designadamente os vizinho daquele país, comportam lições não despiciendas, particularmente para nós, portugueses, na medida em que estamos mais próximos de situações idênticas do que porventura imaginamos. Recorde-se que tal situação foi devida à súbita realização de uma greve selvagem pelos controladores do tráfego aéreo, com uma adesão da ordem dos noventa por cento. A circulação de aviões foi paralisada de um momento para o outro sem qualquer pré-aviso, não apenas a dos aviões com partida ou chegada a Espanha, mas também a de todas as aeronaves que, por força das rotas pré-estabelecidas, houveram de circular no espaço aéreo espanhol. Em nenhuma parte foi dito, mas eu não me admiraria muito se soubesse que, pelo menos durante algum tempo, aviões em voo estiveram entregues a si mesmos, sem qualquer ajuda de terra, correndo consequentemente riscos totalmente inabituais.

Ainda não há muito tempo, falei aqui de liberdade e responsabilidade. Não esperava que tão rapidamente a minha teoria ficasse tão bem demonstrada. A liberdade sem responsabilidade é um arremedo. Uma indignidade. Uma infantilidade. E, ao assumirem a sua atitude de grevistas selvagens, os controladores de tráfego aéreo espanhóis demonstraram pretender usar a liberdade em defesa dos seus privilégios na companhia de uma tremenda irresponsabilidade. É sabido que sem controladores não há aviões a circular, como não os há sem pilotos, como sem médicos não há hospitais, como sem lavradores não há trigo, como sem padeiros não há pão, como sem varredores não há ruas limpas. Isto é, numa sociedade civilizada, numa sociedade que não seja pré-histórica, estamos todos dependentes uns dos outros. O não cumprimento das regras de convivência numa sociedade tal torna a vida social impossível. Mas se alguns de nós, por razões específicas, quiser usar a liberdade em proveito próprio, não pode esquecer-se de um princípio fundamental: o de que os outros estão a contar com eles para produzirem a sua vida. Isto é, todos nós temos o direito de esperar que os demais cumpram com a sua função, executem a sua quota-parte do trabalho global. E se razões poderosas justificarem, assim mesmo e para alguns, a suspensão do dever de trabalhar, estes têm o dever de dar aos outros tempo para que se adaptem a essa realidade. Ao agirem como agiram, entrando em greve de um momento para o outro, sem qualquer pré-aviso, quando, inclusivamente, estavam já aviões na pista, com passageiros dentro, preparados para levantar voo, os vizinhos controladores de tráfego aéreo revelaram estarem-se absolutamente nas tintas para com os direitos dos seus concidadãos, lançando subitamente o caos sobre as suas vidas.

Uma primeira lição a extrair do caso é a verificação de que isto se deu com profissionais extremamente privilegiados, tal aconteceu com cidadãos que, por uma razão ou outra, tiveram a sorte de “cair” numa profissão extremamente bem remunerada e recheada de privilégios. É certo que se trata de uma profissão que exige um grau de responsabilidade profissional acima da média. Todavia, não maior do que, por exemplo, um soldado em ambiente de guerra no Afeganistão ou no Médio Oriente. E também não nos devemos esquecer que a profissão de controlador aéreo é servida por tecnologias sofisticadas que, em muito, aliviam o propalado stress que lhe está associado. Um alívio a injustificar, inclusivamente, a elevada taxa de absentismo que se verifica na profissão. Farão os controladores aéreos ideia dos sacrifícios que, hoje, em Espanha como aqui, são pedidos a profissões que, todavia, são tão necessárias como a sua? Provavelmente não. Recostados nos privilégios associados à sua, sentem-se senhores feudais intocáveis, por disponibilidade de uma arma que, notemos bem, não é sua, é pertença de toda a sociedade. Numa atitude cuja irresponsabilidade atinge profundamente o conceito de liberdade. Não há liberdade sem responsabilidade.

Uma segunda lição tem a ver com aquilo que, agora, podemos pensar quando pretendermos viajar de avião. Sabemos todos que as nossas vidas estão dependentes tanto do saber. da competência e da responsabilidade do piloto do avião como do saber, da competência e da responsabilidade do controlador aéreo que, em terra, dita as suas ordens para aquele. Porventura, estarão mesmo mais dependentes das qualidades deste do que daquele. E eu pergunto: algum de nós teria coragem para entrar num avião se soubesse que o piloto que o vai conduzir é um irresponsável? É. Nenhum de nós o faria. E vamos, a partir de hoje, entrar nos aviões sabendo que a nossa vida vai ficar, por algum tempo, entregue a irresponsáveis? Nenhum de nós seria capaz de comer o papo-seco do pequeno-almoço se suspeitássemos sequer que o padeiro usava sem cuidado o veneno para ratos.

Sendo assim, a passividade da sociedade para com comportamentos deste jaez só pode conduzir à destruição da própria sociedade. Impensável, isto, depois de tantos milénios gastos na sua construção. O que impõe à sociedade a obrigação de reagir com dureza a comportamentos como os que originam esta crónica. Num primeiro momento, o Governo e a sociedade espanhola reagiram como convinha. Mas não chega. As consequências da atitude dos controladores espanhóis ultrapassam, em muito, o caos momentâneo causado. É imperioso que tais indivíduos sejam afastados da sua profissão logo que possível. Vão para o desemprego, viver às custas da Segurança Social? Pois que vão. Ainda assim, serão privilegiados, porque haveremos de os sustentar não obstante tenham sido eles os causadores do seu próprio desemprego.

Por fim, a consequência maior que devem suportar pela sua atitude irresponsável. Não tem direito à liberdade que dela faz um uso irresponsável. O direito à greve é uma das principais conquistas da liberdade. Mas, numa sociedade civilizada, numa sociedade onde as relações sociais não sejam baseadas na força de que cada um dispõe, não há liberdade irresponsável. Logo, o direito à greve não pode estar ao alcance de irresponsáveis. Nem sequer isto é uma ideia nova. Há muitas atitudes, muitos comportamentos, que a liberdade não permite. Logo, os controladores aéreos espanhóis deviam ficar impedidos de utilizar esse direito, o direito à greve. Se tal for feito, seria uma lei especial. Seria. Mas também especial foi a sua utilização da liberdade sem responsabilidade.

Seria bom que fosse debatido, em Portugal, o que faremos em circunstâncias idênticas. Quais as penalidades a aplicar a uma classe profissional que entre em greve selvagem, deixando os seus concidadãos no meio duma ponte à qual, deliberadamente, cortaram as extremidades? À dureza de uma atitude tal tem de corresponder uma dureza semelhante.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA - 9/12/2010

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