AÇÚCAR AMARGO
É natural. Do jeito que andam os sonhos em Portugal, é natural que os do Natal, este ano, tenham só canela. Isto, se tiver sobrado alguma canela no porão e uma qualquer nau esquecida ali para os lados de Belém, que o tempo não vai para importações. Sobretudo, a crédito. Já chega de dívida. Pelo menos, é o que dizem os nossos credores e a China não produz canela. Veio na pior altura, esta falta de açúcar. Exactamente quando o consumimos aos quilos. E, mais absurdo ainda, porque, à boa maneira portuguesa, só nos interessa o “hoje”, sem nunca pensarmos no amanhã. Designadamente, os governantes. Como esta falta de açúcar largamente comprova.
Estamos nessa penúria porque a colheita de cana do açúcar nos países que costumam ser nossos fornecedores foi má e há escassez mundial dessa matéria-prima, dizem. Mas afirmar isto é ter visão curta, memória curta, argumentação curta. Por uma razão simples. É que o açúcar que nós utilizamos pode ser obtido ou da cana do açúcar ou da beterraba açucareira. E aqui é que a porca vai torcer o rabo, como diziam os nossos avós romanos, com quem, ao que parece, só aprendemos o idioma. Já eles sabiam adoçar a boca com a beterraba. E nós até talvez tenhamos aprendido isso. Mas esquecemo-nos, quando os altíssimos poderes europeus decidiram que tal deveria ser um domínio fora de alcance dos humildes lusitanos. Bem ao contrário dos nossos vizinhos e irmãos espanhóis, que satisfazem hoje 90% das suas necessidades de doçura com o saboroso tubérculo.
Tudo começou na discussão da política agrícola, ali por 2003/2004. As autoridades comunitárias foram imperiosas: Portugal devia abandonar a cultura da beterraba. Isto, poucos anos – onze - depois de a cultura da beterraba ter sido apresentada como uma excelente alternativa para a agricultura portuguesa, no sentido da modernização e da utilidade nacional. Colhíamos já , então, beterraba suficiente para produzir 71.000 toneladas de açúcar por ano. Muito longe do quase um milhão de toneladas que os espanhóis produzem hoje, mas, ainda assim, um número a começar a ter significado. A vontade da Comunidade, ainda em fase pré-decisória, mereceu uma gigantesca manifestação em Bruxelas, na qual se juntaram produtores portugueses, espanhóis, italianos, irlandeses e finlandeses. Se produziu algum resultado, tal manifestação, não foi para os portugueses. O Governo de então, pela voz do Ministro da Agricultura, afirmou que Portugal ia resistir à vontade europeia. Se resistiu ou não, não sei. No final, o resultado da “resistência” foi o esperado. Quota de Portugal na produção europeia de beterraba: ZERO. Bem ao contrário do que aconteceu com a Espanha, no caso da oliveira, por exemplo, onde os resultados foram mais ou menos a contento da Espanha.
Em contrapartida da decisão, prejudicial para Portugal, a Comunidade atribuiu ao nosso país alguns milhões de euros “para reestruturação do sector”, um eufemismo que geralmente traduz uma insignificante indemnização por perdas e danos. Vendemos a capacidade produtiva do país, seria muito melhor expressão para retratar a realidade. Na circunstância, Manuel Campilho – no 2º.Congresso Nacional de Rega e Drenagem – Fundão – afirmava:
“Só por «incompetência» Portugal pode ter saído penalizado na reforma encetada em 2006 pela União Europeia no sentido de reduzir a produção europeia de açúcar em 6 milhões de toneladas até à campanha 2009/2010. Portugal aceitou ser tratado como um grande produtor e colocado em pé de igualdade com países exportadores como a Alemanha e a França, quando na realidade produzimos apenas 20 por cento do açúcar que consumimos.”
Enquanto isto se passava, os nossos deputados europeus – aqueles que, como os meus Leitores sabem, ganham rios de dinheiro para estarem em Estrasburgo - dormiam ou liam as últimas revistas de fofocas. Justiça seja feita e se diga que apenas a deputada europeia portuguesa Ilda de Figueiredo, do Partido Comunista, se incomodou com o assunto e, mesmo assim, de um modo parcial, ao colocar à Comissão Europeia a seguinte questão:
“Tendo em conta a importância para Portugal da manutenção da fábrica de transformação de beterraba sacarina (D.A.I.), em Coruche, e das muitas centenas de agricultores que produzem beterraba sacarina e sabendo-se que é possível aumentar a sua produção para 130 mil toneladas, o que contínua a ser ainda muito insuficiente para as necessidades de consumo de açúcar do País, solicito à Comissão que me informe do seguinte:
1- Quais as garantias de que Portugal pode manter em laboração a fábrica de transformação de beterraba sacarina em Coruche?
2- 2- Quais as previsões quanto à produção de beterraba sacarina em Portugal por parte dos agricultores portugueses face às posições assumidas pela Comissão e às decisões do Conselho de Agricultura?”.
Portanto, meu Caro Leitor, na eventualidade de ficar sem açúcar para os seus sonhos natalícios, já sabe a quem culpar. A saber:
a)- Aos burocratas da Comissão Europeia, que decidiram reduzir a produção de açúcar de beterraba, deixando espaço para a importação de açúcar de cana, sabe-se lá em nome de que interesses;
b)- Aos mesmo burocratas por terem decidido “comprar”, por tuta e meia, a capacidade produtiva portuguesa no mesmo domínio, como se a nossa “meia dúzia” de toneladas produzidas pudessem desequilibrar o monstruoso mercado de açúcar europeu;
c)- Aos Governos portugueses que decidiram vender, sem resistência visível, a mesma capacidade, preferindo receber umas coroas muito mais fáceis de gastar pelos governantes do que o açúcar;
d)- A Você mesmo (e eu e os outros) que deixaram estar tais governos a (des)governar o país a seu bel prazer.
Já não adianta chorar sobre o leite derramado e nem sei porque escrevo estas coisas. Mas faço-o porque entende dever ficar registado em qualquer sítio, de modo entendível, quem é que nos conduziu e conduz ao estado de penúria em que estamos. Uma montanha de decisões de governos de todas as cores, a quem faltou sempre alguém capaz de olhar por cima da colina postada à frente dos seus olhos e de ver a montanha mais alta que se escondia por detrás dela.
Por mim, sei o que vou fazer. Porventura o único que me resta. Se não tiver açúcar para os meus sonhos este Natal, vou colocar-me frente ao edifício da Comissão Europeia, em Bruxelas, com um grande cartaz. Neste, na primeira linha, escreverei em letras gordas: BUROCRATAS DAS COTAS. Não confundir com COTAS BUROCRATAS. E na segunda linha, o grito: QUERO OS MEUS SONHOS DE VOLTA! Por fim, uma última linha, com a afirmação de princípio: FORA OS LIBERAIS QUE NÃO RESPEITAM O MERCADO.
Não conseguirei nada, seguramente. Nem açúcar, nem sonhos, nem outros burocratas, nem mercado, nem nada. Mas ficarei sossegado. Podem roubar-me tudo impunemente. Mas, pelo menos, ficam a saber que eu sei quem me roubou.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 16/12/2010
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