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8.12.10

MEMÓRIA

O SENHORIO-INQUILINO

Noticiaram os jornais que o Estado se prepara para vender os edifícios públicos, nos quais produz os seus serviços, aos bancos. E, se os bancos não quiserem, fará essa venda à Caixa Geral de Depósitos (CGD). A qual, é também um banco. Com esta particularidade: pertence ao Estado. Isto é, pertence precisamente a quem lhe vai vender os imóveis. Depois, o Estado pagará renda pela utilização dos referidos edifícios.

Deixemos de lado a provável absoluta necessidade que o Estado tem de fazer isso, a fim de que o Governo possa cumprir os critérios de equilíbrio das contas públicas impostos por Bruxelas. Quando o Estado recomeçou a vender por milhões empresas que lhe tinham custado tuta e meia nas nacionalizações sequentes à Revolução de Abril, disse-se que ele estava a vender os anéis. Se assim foi, então o Estado prepara-se agora para começar a vender os dedos. Num processo de autofagia que não terá fim. A seguir aos dedos, irão os braços, as pernas, a cabeça e, por fim, o coração. Mas deixemos isso. Concentremo-nos nas consequências curiosas a que a situação descrita - esta, a do Estado passar a ser realmente inquilino de si próprio, mas formalmente tendo um outro senhorio formal - vai dar lugar.

Em primeiro lugar, veja-se como se justifica agora o facto de o Governo ter acabado com a bonificação do crédito-jovem para aquisição de habitação própria. Era o que faltava! Se o próprio Estado - que é velho que se farta - não consegue viver em casa própria, porque haveriam os jovens de a ter? O respeitinho é muito lindo.

Depois, vamos, com certeza, ver o Estado a tornar-se sócio da Associação dos Inquilinos Portugueses. Se o não fizer, pode o Governo que o representa ser acusado de má gestão. E, tornado sócio, acho que todos nós, os inquilinos, devemos eleger o Estado como Presidente da Associação. Não é por nada. Mas é que o Presidente não pode exigir para ele o que os outros associados não têm. E, assim, ficaremos todos protegidos. Para não chamar à liça outros exemplos, lembremo-nos apenas de um. Como se sabe, o Estado paga tarde e a más horas. Isto é, nunca mais vai pagar a renda ao dia oito. Pagará a renda aí lá para o dia vinte e cinco, doze meses depois daquele a que a renda diz respeito. E, se assim for para o Estado, não há outro remédio. Tem que ser assim para todos. Ou somos consócios ou haja moralidade.

Em terceiro lugar, veja-se o caricato desta situação que vou descrever. Imagine o meu Caro Leitor que é funcionário duma repartição de finanças. A qual labora nos vários andares de um edifício em que o senhorio é a CGD. E imagine que se rompeu o cano de esgoto da sanita do andar por cima daquele onde o meu Caro Leitor trabalha. Começando algumas pingas de líquido menos transparente e mal cheiroso a humedecer os processos dos impostos em atraso que o meu Caro Leitor tem que cobrar aceleradamente. A sua primeira medida será ir falar com o Chefe, naturalmente.

- Ó chefe! Os processos cheiram mal!

Ao que o chefe, também naturalmente, responderá:

- Ó homem! Ande lá com eles p'rá frente! Já cheiram mal há muitos anos e não é por isso que deixamos de tratar deles. Pelo menos de alguns!

Com a paciência a que o obriga o facto dele ser chefe e o meu Caro Leitor ser apenas subordinado, insistirá:

- Não é isso! São os tipos da cadastro que romperam o cano da sanita. E agora nem se pode tocar nos processos!

A surpresa do chefe será mais aparente que real. Ele já sabe, há muitos anos, que os tipos do cadastro só fazem serviços desses. Mas, como chefe que é, ele sabe tudo. Por exemplo, sabe que canos de esgoto rotos são de conta do senhorio, não são do inquilino.

- Não posso fazer nada. Telefone aí para a CGD e peça-lhes que nos mandem o picheleiro.

Nem lhe digo nem lhe conto, meu Caro Leitor. Você está metido num grande sarilho. Senhorio é igual em toda a parte. A CGD vai agir como os restantes. Em primeiro lugar, vai mandar um engenheiro fazer a peritagem, para saber, de fonte segura, que é de sua conta o trabalho necessário. E a sanita a pingar. Depois, sem poder eximir-se à responsabilidade, vai-lhe mandar um economista, com o objectivo de fazer o orçamento dos custos a suportar. E a sanita a pingar. Não contente, a CGD vai pedir ao dito economista um estudo de viabilidade sobre as obras a realizar. Se possível, ilustrado com um outro estudo, macroeconómico, sobre a incidência das rupturas de canos sanitários nos edifícios com mais de vinte e cinco anos. E o cano da sanita a pingar. Depois de tudo isso feito, decidida a realização da obra, e como faria qualquer senhorio, a CGD vai começar a desculpar-se. Que é muito difícil arranjar pessoal especializado. Que o mal foi terem acabado com a escolas técnicas. Que só há doutores. E o cano da sanita a pingar. Quando, por fim, o senhorio reparar o cano, já não haverá remédio. Os processos estarão irrecuperáveis. Moral da história: Contemos com mais prescrições de impostos. E com um perdão fiscal bem mais original. O Estado perdoará metade da dívida a quem se auto-denunciar como devedor de impostos de que o Estado perdeu os processos. Tudo por causa de uma sanita.

Onde eu não conto com problemas é em eventuais despejos por falta de pagamento da renda. Porque a coisa passa-se assim. O senhorio pede ao tribunal o despejo. O inquilino não manda no tribunal e o despejo é decretado. E, das duas uma. O Estado deve ser bem comportado. E sair de boa vontade. Mas mudar um serviço público é uma trabalheira danada. Assim, não é de excluir a hipótese de ter que ir a polícia ajudar ao despejo. E lá vai ela, sirenes a rasgar os ares, como é de bom tom na polícia. Mas, de repente, chega um telefonema do dono da polícia. Precisamente o inquilino candidato a despejo. "Nem pensem!". Desesperado, o senhorio insiste para que a ordem do tribunal seja respeitada. Aí, o inquilino aborrecido com a insistência, e como é ele quem manda no senhorio, substitui os chefes do senhorio. E tudo volta ao princípio.

Há uma previsível situação que me vai encher as medidas. É que eu também sou inquilino. Aliás, todos somos. Se não do dono do prédio, daquele a quem o temos hipotecado, como garantia do pagamento do crédito pedido para comprar a casa. É que costumo abordar o meu senhorio, todos os dias oito de cada mês, com ar humilde e atitude respeitosa, não vá eu ter un cano de sanita roto e ele não fazer nada sem me aumentar a renda. Agora, vai ser de encher as medidas ver um inquilino, pelo menos um, a tratar o inquilino com atenção, respeito e veneração. Servirá isso para aliviar os meus recalcamentos.

E depois disto, quando já sorrimos com a anunciada medida de equilíbrio orçamental, detenhamo-nos um pouco. E pensemos no problema. Se a CGD pertence ao Estado. Se os imóveis pertencem ao Estado. Se a propriedade formal muda, mas não muda a substancial. Que importância tem que a propriedade dos imóveis esteja formalmente escriturada directamente no Estado ou numa dependência sua? Com o devido respeito, nenhuma, na minha opinião. Mas se é absolutamente indiferente ter o património que os imóveis representam escriturado directamente no Estado ou numa dependência sua, que raio de equilíbrio é que se ganha com a transferência? Se bem me lembro do que aprendi, o equilíbrio será meramente contabilístico. E, se bem me lembro ainda, não há nenhum equilíbrio meramente contabilístico que salve uma empresa da falência.

Prossigamos alegremente no mundo da fantasia. Pode ser que apareça por aí algum Harry Potter que nos salve.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 25/8/2003

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