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15.12.10

MEMÓRIA

MILAGRE

Era difícil. Mas o milagre deu-se. Os barcos de pesca espanhóis não vão, para já, invadir as àguas territoriais portuguesas. O acordo celebrado com a Espanha deu mais sete anos de relativa respiração fácil aos barcos portugueses. É muito mais do que as esperanças mais fagueiras poderiam alimentar. Em Julho deste ano, eu dizia aqui, nestas colunas:

" Corações ao alto, nas pescas, portanto. Mais dia menos dia - dependendo do quanto os nossos governantes possam ser influentes e negociar em Bruxelas - teremos aí as grandes frotas europeias a pescar nas "nossas" águas, designadamente a espanhola, tida pela segunda maior da Europa comunitária e não comunitária, logo a seguir à russa. Isto é, a nossa melhor esperança é conseguir que essas frotas venham devagarinho e pesquem pouco de cada vez.".

Por mais que existam forças ligadas ao sector - designadamente as sindicais - a dizer que isto é a ruína das nossas pescas, a verdade é que o Governo conseguiu um autêntico milagre. Se pensarmos que, no próximo ano, podiam estar a pescar nas águas portuguesas os mais de dois mil e quinhentos barcos de pesca, industrial e artesanal, espanhóis - que a tanto monta a dimensão da respectiva frota - os menos de duzentos barcos agora autorizados a pescar nas nossas águas territoriais afiguram-se uma ninharia. Tanto mais ninharia quando apenas umas escassas três dezenas mais de barcos foram adicionados ao que já estava autorizado.

E aquilo que foi conseguido pelo Governo Português tanto foi benéfico que, na vizinha Espanha, grassa no sector uma indignação grande pelo acordo celebrado pelo seu Governo. Particularmente na Galiza. Onde a cedência espanhola foi considerada uma humilhação. Tal como a secretária das pescas do respectivo governjo provincial exprimiu, quando abandonou as negociações. Valeu, na circunstância, a posição assumida pelo Governo Central dos nossos vizinhos, o qual, sem hesitações, cedeu às pretensões portuguesas.

Devo dizer que estou levemente intrigado. Tanto quanto sei, em economia, designadamente nas relações económicas entre nações, não há boas vontades nem generosidades. Há apenas interesses. Os países, quando negoceiam, não o fazem para ser bonzinhos para com os outros países. A balança onde se pesam os acordos internacionais têm sempre dois pratos. Nuns se colocando o que é a favor e no outro o que é contra os ditos interesses. Claro que Portugal tinha ao seu dispor, nos termos do acordo europeu, um argumento de peso. Poderia sempre invocar o "interesse vital" das pescas para a economia portuguesa, com isso congelando as intenções espanholas. Se assim fosse, nem as tais três dezenas de barcos mais viriam para as nossas águas. Só que a invocação de tal direito também teria custos pesados para Portugal. Pela posição de antagonismo face à Comunidade que representaria e pela eventualidade de engatilhar retaliações económicas.

Sendo os interesses respectivos aquilo que comanda os acordos internacionais na área económica, é bom ter presente um outro facto. É que o confronto de interesses económicos entre os diversos países nunca é sectorial. Isto é, quando se sentaram à mesa para discutir o acordo de pesca, os Governos português e espanhol não tinham sobre a mesa, com mais ou menos clareza, explícita ou implicitamente, os interesses meramente piscatórios. Por força da sua qualidade de vizinhos, ambos os países partilham interesses mais variados. E, porventura, aí reside uma grande parte da explicação para o milagre do sucedido no domínio das pescas.

Já não é dúvida para ninguém que o investimento espanhol, em Portugal, tem vindo a crescer a olhos vistos. Cada vez mais, os espanhóis estão presentes em mais sectores da actividade económica portuguesa. Por um lado, ainda bem. Atenta a fragilidade empresarial portuguesa, valham-nos ao menos os espanhóis para não ficarmos, daqui a nada, sem ter nada que fazer na Europa que cada vez mais se nos escapa. Mas é bom que sintamos ser este fenómeno o retorno dos Filipes, quatrocentos anos depois, desta vez com pézinhos de lã. Desta vez para ficar. Não parece mal nestes tempos da globalização. Pergunto-me mesmo se não seria justificável, numa eventual Europa das regiões, a criação da Região Ibérica, com os interesses de Portugal e da Espanha unidos. Pelo pedacinho de força mais que daria ao conjunto e pelo muito que os portugueses ficariam a ganhar, patriotismos à parte. Mas, com isso ou sem isso, o facto é de que os espanhóis têm interesse em que não façamos grandes ondas à sua invasão pacífica. Sobretudo, se permitirmos que, no seu país, eles continuem a proteger descaradamente as suas actividades económicas contra a invasão "estrangeira", também aí se contando as incipientes tentativas portuguesas. Interesse dos nosso vizinhos que, seguramente, também esteve presente na negociação piscatória, pelo menos no subconsciente.

Todavia, é bem capaz de ter havido interesses mais directos e concretos do que aquele interesse geral de que falei. E, olhando em redor, o que mais imperiosamente salta aos olhos, é o projecto do TGV (combóios de alta velocidade) europeu. Um projecto largamente financiado pela Comunidade e que tem, necessariamente, que o conduzir a Lisboa e ao Porto. O que faz com que tenha que haver acordo entre Portugal e a Espanha sobre os respectivos traçados. Encargo que recai mais sobre a Espanha. Já que sendo Portugal o fim da linha, é, para os espanhóis, relativamente indiferente sobre o respectivo traçado dentro do nosso país. Em boa verdade, o que interessa aos espanõis é por onde entra o TGV em Portugal. Porque isso determinará por onde devem eles conduzir a via até à fronteira portuguesa. E nós sabemos que tem havido desacordo quanto a esse pormenor. É que os portugueses têm sido do entendimento que o TGV deveria entrar sensivelmente por onde entra hoje a linha tradicional, na Beira Alta, e, daí, dirigir-se ao Entroncamento, onde se bifurcaria em duas linhas, uma para Lisboa e outra para o Porto. Enquanto os espanhóis pretendem levar a linha até Badajoz, entrando ela em Portugal pelo Alentejo, dirigindo-se a Lisboa e, daí, para o Porto.

Pois bem. Um bom trunfo para jogar pelos portugueses nas negociações sobre as pescas, poderia ter sido o acordo sobre o TGV. Isto é, os espanhóis cederiam nas pescas para que nós cedêssemos no TGV. Circunstâncias em que, aparentemente, o norte do país ficaria a perder, na medida em que, para o TGV chegar ao Porto, teria que dar a grande volta pelo sul. Só que eu disse "aparentemente". É que, indo o TGV até à Galiza, pode chegar ao Porto, aliás como está tambémj previsto, através daquela província espanhola. Isto é, o previsto são duas entradas em Portugal. Uma pelo sul e outra pelo Norte, fechando-se a rede com a ligação de uma à outra. E tudo parece indicar que o TGV pode chegar ao Porto dentro de cinco anos, vindo da Galiza. O que reduziria aos interesses de estratégia militar, cada vez mais injustificados numa Europa Unida, as inconveniências para Portugal de estarmos de acordo com os nossos vizinhos.

Se assim for - o que veremos em pouco, aquando do acordo final sobre o traçado do TGV, previsto para breve - e se se confirmar esta minha especulação, haveríamos de chegar à conclusão de que tinha sido imensamente baixo o preço pago por Portugal pelo acordo piscatório. E que o Governo tinha sabido defender muito bem os interesses gerais de Portugal. A ver vamos. Para já é de bater palmas.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 21/10/2003

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