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27.7.08

OS HERÓIS E O MEDO - 335º. fascículo

(continuação)

Vezes sem conta tentaram e vezes sem conta falharam. Abençoada inocência a daquelas crianças. Persistiam, persistiam, sem desânimo, na construção do seu sonho, uma morança de lama, e dele não desistiam.

A certa altura, uma delas esfregou as mãos enlameadas no rosto negro como um tição. As outras olharam-na, admiradas com o acontecido. A lama pegara-se ao rosto e ali ficara, numa mancha cada vez mais esbranquiçada, à medida que secava. Logo o jogo se modificou, abandonada a intenção de construir a morança. Com desvelo minucioso, enlamearam as caras, até que o negro desapareceu completamente sob a capa barrenta. Pularam de contentes, batendo as palmas e rindo cristalinamente. O mais vivo chegou-se a Mário e, dançando à sua volta, ia cantando: “Mim branco… Mim branco… Mim branco…”. Mário estendeu-lhe a mão. Ele agarrou-a. Com a ponta do indicador, Mário traçou-lhe uma cruz na testa, raspando a lama com facilidade. Os outros dois miúdos, entretanto retraidamente mais próximos, olharam para a cruz negra impressa na testa do companheiro e desataram a correr, logo seguidos por este. Mário acompanhou-os com o olhar, até desaparecerem ao fundo da rua. Encolheu os ombros e foi-se, estugando o passo, por serem quase horas de jantar. Ao chegar ao quartel, reparou em alguns soldados que sairiam nessa noite para montar guarda à ponte de Braia. Papagueavam, divertidos, em torno duma pequena fogueira. Com rolhas de cortiça queimadas, enfarruscavam rostos e mãos, procurando disfarçar a tez branca por debaixo do negro dos tições. Mário foi-se deitar. No quietude do quarto, Álvaro concluía mais um dos seus poemas.

(continua)
Magalhães Pinto

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