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23.11.09

MEMÓRIA

MARIONETAS

Recordo-me bem do que foi a minha experiência militar na Guerra Colonial. Não operacional, eu pouco mais era do que um pacífico observador do que se ia passando em meu redor. E recordo-me - já escrevi, aliás, isto algures - de como a generalidade da população da Guiné não tinha nada a ver com a guerra. Esta não passava de uma querela entre a vanguarda de um partido que desejava a independência daquele território e as forças colonialistas que pretendiam proteger a sua soberania pluricentenária sobre ele. O resto, a grande maioria da população, pretendia sobretudo viver tranquilamente a sua vida, amanhando os campos e pescando nos rios, sem outras ambições que não fossem escapar à tempestade a ribombar à sua volta e às suas consequências. O que, geralmente, não conseguiam. Vinham os guerrilheiros e roubavam. Géneros que os alimentassem. Jovens que servissem a causa. Muitas vezes usavam as pacíficas tabancas como base para emboscadas às tropas regulares. Saíam os guerrilheiros e vinham as tropas regulares. Castigavam pela colaboração involuntária. As pacíficas populações eram o saco do combate de boxe que se travava entre uns e outros. Eram, indubitavelmente, as mais sacrificadas, aquelas sobre quem todos os penares mais incríveis e mais cruéis recaíam. Eram, eles, os pacíficos, os não envolvidos, os que queriam apenas viver tranquilamente a sua vida, aqueles que pagavam o preço humano mais alto da guerra então em curso.

Passaram quase quarenta anos. Já não estou na Guiné. Já não há nenhuma guerra, no sentido tradicional. Apenas sou espectador do meu país. E o que vejo mostra-me que não há grande diferença entre aquilo a que assisti então e o que vejo passar-se agora. As armas já não vomitam fogo. O vómito é de palavras. O vómito é de leis. O voto é de irresponsabilidade. O vómito é de interesses, sobretudo económicos. O vómito é de influências. Nos órgãos centrais do Estado. Nos órgãos políticos regionais. Nas autarquias. Tudo sob a bandeira do regime. Vivemos em democracia, diz-se. E basta pensar um nadinha em tudo quanto vai acontecendo para vermos que a anarquia tomou outro nome. Os adversários da democracia devem estar a ficar felicíssimos. Em Portugal, trinta anos depois de acendidas as velas da esperança, já nem o coto resto. A ética foi enterrada nos mil e um funerais realizados às escondidas do Povo. O Poder do Estado, que devia ser rei e senhor, não passa de escravo de quem tem acesso aos media, de quem tem poder sobre a conjuntura económica, de quem tem amigos sentados nas respectivas cadeiras. Aderimos ao liberalismo económico, mas ninguém se lembrou de dizer que este só é uma boa política se houver um Estado forte, mais ou menos impermeável aos interesses económicos. Mas um Estado forte necessita de servidores fortes, capazes, competentes, corajosos. Já os houve. Os tempos iniciais da nossa "jovem" democracia foram tempos de gente forte. Acabaram, esses tempos, aí por alturas de 1993. A partir daí, temos assistido à queda do Poder do Estado. Muito porque os seus agentes deixaram que assim acontecesse. Quando, mais do que o resto, era necessária coragem, assistimos à pusilanimidade desenfreada. Hoje, o Estado é quase uma caricatura, que apenas provoca o sorriso alvar filho de uma boa anedota.

Recordar-se-ão, os meus leitores mais atentos, de que aí há quatro ou cinco anos atrás, comecei a gritar por socorro nesta coluna. Percebia-se, a olho nu, que se iniciara a derrocada. Ceder aos mais variados grupos de pressão, em nome da paz social e do consenso, era a colocação de rodas num veículo a começar a rolar num plano inclinado, era a abdicação do Poder do Estado. O desastre, facilmente prenunciável, está aí. Dificilmente restarão sobreviventes. Aqueles que esperam um Orçamento Geral do Estado para 2005 mais favorável do que no passado recente vão sofrer uma grande desilusão. Até pode ser que o Orçamento o seja. Mas o Orçamento é apenas um papel, uma declaração de intenções. A realidade que virá em seguida é que é realmente importante. E essa realidade está inalterada. O País continua retalhado em milhentos de grupos, ditos "de pressão", cada um a remar para o seu lado. Circunstância em que o barco não tem caminho aceitável possível. Para cima não vai, devido à gravidade. Para um qualquer lado também não, por falta de remadas vigorosas a exigirem o mesmo sentido em todos. Só fica um movimento possível, depois da vertigem do rodopio. Para baixo, em direcção ao abismo.

É curioso como muitos dos que agora reconhecem ser essa a situação passaram todos estes tempos para trás a vangloriar os fautores da queda e a esconder os seus malefícios. Agora, que o barco corre o risco de afundar-se, correm à amurada e gritam a plenos pulmões que aquele já está a meter água. E, entre eles, nem um único a procurar calafetar as fendas por onde jorra a água. Pelo contrário. Vão pregando pregos onde é susceptível que a fenda se alargue. Pensam - pensarão? - que estão a remendar o barco e estão a construir o esquife. E, entre eles, nem um só avança com uma solução. E, entre eles, nem um só se propõe contribuir para salvar o barco. A navegar neste, já com água até ao pescoço, estão os que vão pagar com a vida - a que desejariam - os desmandos da equipagem, aqueles a quem tanto lhes faz quem seja a marinhagem, quem seja o piloto. E, no entanto, foi com base em ordem sua que o piloto foi escolhido. No fim da viagem, sentirão que não passaram de simples marionetas. Tal como os pacíficos habitantes da Guiné que conheci na Guerra Colonial. Tal como os simples do meu Povo, que votam, a maior partes das vezes, sem bem saber o quê, em quê, para quê.

Um dos primeiros a gritar que íamos ter desastre, quero também ser um dos primeiros a afirmar que a salvação é possível. Não do jeito que tem vindo a ser tentada. Não chega tentar tapar as fendas com betume. É necessário um casco novo. Nem que tenhamos que ser todos, os mais conscientes, a servir de casco. Está aí uma óptima oportunidade para alguém em quem ainda não perdemos toda a confiança - o Senhor Presidente da República - ficar na História. Apenas por ter sabido tomar uma iniciativa necessária e corajosa, num momento que já não é o certo mas que ainda é o atempado. Para tomar uma difícil decisão, o Senhor Presidente da República chamou meio mundo ao seu palácio, para se documentar. Tem que chamar meio mundo agora, para mobilizar. Eu sei que, constitucioonalmente, não lhe cabe o papel da orientação política do País. Mas sei que lhe cabe o dever - porque apenas ele para isso tem representatividade democrática suficiente - de salvar o futuro do país. É necessária uma revolução pacífica. É preciso chamar os melhores. É preciso conquistar os media para o esforço de regeneração necessário. É preciso estarmos todos, aqueles que agem e aqueles que opinam, a remar para o mesmo lado. Ou encontramos o rumo ou afogar-nos-emos todos, inexoravelmente. E, para encontrar esse rumo, para remar em direcção a esse rumo, é necessário que o chamado "magistério de influência" do Senhor Presidente da República passe da simples intervenção verbal para a chamada à responsabilidade. Por Belém têm que passar todos os que podem influenciar a rumo e a marcha. Todos temos direito à pluralidade. Mas nenhum de nós tem o direito de fazer andar o barco para trás ou para o fundo. E, entre a marinhagem, ninguém tem direito a fazer dos passageiros marionetas. Isso é proibido. Deve ser, pelo menos. E na frente de marcha fica um grande leque de destinos. É dentro desse leque que deve ser encontrada a pluralidade. Se soubermos entender isto, então talvez ainda nos safemos. Passe o calão. Que, se necessário, devemos usar sem falsos pudores.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 23/8/2004

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