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25.6.11

CRÓNICA DA SEMANA - II

O LADO OCULTO

Por dever de ofício, relacionado com o meu próximo livro, a publicar em Setembro próximo, tive de investigar a gestão de uma autarquia nos anos sessenta do século passado. Fi-lo, por obrigação, com alguma profundidade. Nesses anos já longínquos, eu era ainda um rapazinho, vivia nessa autarquia e estava muito longe de imaginar – creio que estávamos quase todos – como é que as coisas funcionavam. Os presidentes de câmara eram, nessa altura, delegados do Governo, que Salazar conduzia com mão de ferro, sempre preocupado com o equilíbrio das Finanças Públicas, ademais estando estas a responder às ameaças colocadas sobre o nosso Império, devendo sustentar um exército em guerra que rondaria a centena de milhar de homens a cada momento. Durante treze anos, o pigmeu que era Portugal, conseguiu, sem desequilíbrios financeiros, sustentar a passagem pelos territórios ultramarinos de mais de um milhão de soldados.

Vital Moreira, na “História de Portugal”, dirigida por João Medina, aborda a organização autárquica nesse período, dizendo a certa altura:

Decisivos no controlo governamental das autarquias locais foram a ausência de organização democrática, bem como o regime de nomeação governamental dos presidentes das câmaras municipais, que eram simultâneamente ‘magistrados administrativos’, ou seja, delegados do Governo com funções de controlo das autarquias locais. A falta de recursos próprios e a quase total dependência dos financiamentos governamentais – política das comparticipações – completaram os mecanismos de dependência absoluta da administração local perante a administração central.

Hoje, desfrutando os prazeres da democracia, entendemos que era uma violência para com os cidadãos das autarquias tal dependência do Governo Central. Porventura era. Na investigação efectuada, verifiquei situações que demonstravam não ser possível a uma autarquia contratar um empréstimo autónomo – empréstimos que, se autorizados, sempre eram contratados junto do banco público então existente, a Caixa Geral de Depósitos – sem autorização do Governo. O endividamento das autarquias era rigorosamente controlado pelo Governo. Fosse ele de que montante fosse. Cem contos ou cinco mil contos. Hoje, os autarcas são livres de contratar os empréstimos que pretendem, endividando, embora dentro de limites que a Lei “pretende” definir, as respectivas autarquias. Acontecendo que não se vê a existência real, efectiva, de sanções para quem passa os limites. Com uma terrível agravante no meio disto tudo, qual é a de muitas autarquias serem geridas por pessoas que não têm a mínima sensibilidade diante do problema económico-financeiro da respectiva gestão.

Mas, nas circunstâncias financeiras difíceis que hoje vivemos, há uma perversão nesta organização. Vamos lá a vê-la, tendo presente que a situação ora vivida limita os meios financeiros a que Portugal pode ter acesso. Assistimos todos os dias à luta em que hoje se transformou o recurso ao crédito externo, tendo-o conseguido, a cada novo pedido, à subida vertiginosa das taxas de juro. Tenhamos presente que o ónus do desequilíbrio financeiro recai sobre o Governo Central, mas que na sua conta entra também o défice das autarquias. E este é um primeiro desajuste. A responsabilidade não coincide com a autoridade. A autarquia endivida-se mas, quando for contado o endividamento, viramo-nos para o Governo. Pequeno desajuste, mas mesmo assim, significativo.

Todavia, há outra consequência pior da organização financeira do sector público que temos. Vejamos. Os recursos financeiros disponíveis são escassos e caros. E no acesso a esses recursos escassos concorrem:
- O governo central;
- As autarquias;
- Os bancos; e, através destes,
- A economia real, a da produção e do consumo;
O que quer dizer que, se um dos concorrentes absorver mais, menos ficará para os demais concorrentes.

Ora, as autarquias funcionam, neste domínio, de modo descoordenado. Cada autarquia endivida-se o que lhe dá na real gana. Enquando, no governo central, temos pelo menos um Orçamento Geral do Estado a definir o quinhão que ele vai levar dos meios disponíveis, nas autarquias, como um conjunto encaradas, tal não acontece. Isto é, o Estado, por esta escapatória, pode absorver muito mais recursos do que aqueles que a racionalidade económica do funcionamento equilibrado aconselharia. ISTO NÃO ESTÁ BEM! É NECESSÁRIO MEXER AQUI! Isto é, se queremos caminhar em direcção a uma economia global organizada, temos de condicionar a quantidade de recursos que as autarquias, como um todo, podem consumir.

Pode pensar-se que eu estou a falar de assuntos etéreos. Mas nem de propósito, chegou-me às mãos um documento relacionado com uma autarquia que mostra de que modo este tema é importante. A autarquia é a de Portimão. E foi tema de discussão ali, com uma forte intervenção da oposição. Segundo denúncia enviada ao Tribunal de Contas por essa oposição, ficamos a saber que:
- O município tinha de contratar um financiamento superior a 90 milhões de euros para colmatar dívidas de curto prazo cujo cumprimento se tornara insustentável;
- Os défices da gestão da Câmara, acumulados no período de 2005 a 2010, subiam a 120 milhões de euros;
- O passivo total do município passara de 187 milhões de euros em 2008 para 256 milhões de euros em 2010;
- Acrescia a existência de suspeitas de que as contas oficiais não satisfaziam o princípio contabilístico da integralidade, isto é, haveria responsabilidades ocultas;
- E presumiam os documentos previsionais a estimativa de receitas irrealistas.

A tudo isto ser verdade, como parece que é, não só a vida da autarquia está irremediavelmente comprometida para muitos anos vindouros – o que é mau – como esta autarquia absorveu recursos escassos que provavelmente teriam sido mais produtivos noutros sectores – o que é muito pior. E, ainda pior do que tudo isso e muito mais alarmante, é que a autarquia de Portimão não é caso único nem sequer pouco frequente.

Há a imperiosa necessidade de rever e mexer neste lado oculto do funcionamento do sistema económico nacional. Tem de haver controlo e coordenação do endividamento das autarquias. As autarquias têm de voltar a financiar-se apenas na Caixa Geral de Depósitos, uma vez que os bancos, numa época de crédito duvidoso e dífícil, tenderão a preferir emprestar às autarquias – sempre receberão – do que ao sector privado.

Se não agirmos aqui, também, os nossos sacrifícios podem muito bem vir a ser chuva no molhado.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 23/6/2011

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