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30.6.11

CRÓNICA DA SEMANA - II

OS HONORÁRIOS HISTÓRICOS

Veio de Mário Soares. Essa consciência mumificada que (afortunadamente ainda) temos perorando por aí. Um comentário que me pôs a pensar. A mim, humilde cidadão, que desde os primeiros dias de Liberdade, tenho seguido com atenção. Foi meu Primeiro-Ministro uma data de anos. Foi meu Presidente da República ainda mais anos. Estive com ele, à chuva, na defesa da Liberdade recém-nascida, quando o PCP e a UDP (esta hoje maquilhada de Bloco) tentavam, por todos os meios, fazer regressar a ditadura. Assisti ao modo como soube dar ao Professor Ernâni Lopes – que saudades! – roda livre para colocar nos eixos um Portugal descarrilado pela morte de Sá Carneiro. Curioso. Tínhamos então por aí o FMI, sem quase disso nos apercebermos. Sei que perdeu as eleições seguintes porque colocou o reequilíbrio financeiro de Portugal à frente de tudo. Teve a compensação na posterior eleição para Presidente da República. Habituei-me a ouvi-lo com atenção. Mesmo quando decidiu que já chegava de Cavaco Silva e saltou para a rua, com as suas presidências abertas, pondo de lado toda a colaboração institucional que devia ao Governo da Nação. Com essa atitude dando razão ao facto de ter eu sido, creio, que a única voz a levantar-se, na Comissão Política Nacional do PSD, a advogar a abstenção do PSD na sua segunda candidatura para o cargo de Supremo Magistrado, apoiada então por aquele Partido. Continuei a ouvi-lo quando fundou a sua (passe o pleonasmo) Fundação. Assisti em silêncio ao desvio de verbas avultadas do Orçamento Geral do Estado para financiar essa Fundação (cuja utilidade ainda me hão-de um dia explicar, espero eu). Não guardei silêncio na circunstância, intuindo já que estávamos na presença de algo que julgo injustificado, os honorários históricos. Mas agora, depois de tê-lo ouvido hoje a falar sobre a Europa e a Grécia, não posso mais. De algum modo, continuar a ouvi-lo era auto colocar-me na situação de pagador, também, de honorários históricos.

Então é assim. Segundo Ele, o comportamento da Europa para com a Grécia é uma vergonha. E porquê? Porque não se faz isso que a Europa vem fazendo – exigir que os gregos se sustentem a si mesmos – porque ali nasceu a Liberdade, a Ciência e a Cultura. Algo que a Europa faz – também segundo Ele – porque só há dois governos socialistas nessa mesma Europa. E existe, todavia, um remédio fácil para a detestável situação, ainda segundo Ele. Derrubar toda essa cambada de governos conservadores que hoje há na Europa.

São palavras extremamente perigosas, estas. Imbuídas das convicções socialistas a que ele tem direito, naturalmente. E o socialismo, na versão mitigada que, para além das aparências, ele sempre praticou não é nenhum demónio nem sequer execrável. E são perigosas porque são pronunciadas num momento em que a situação existente em Portugal se encontra extremamente próxima da daquele país mediterrânico e podem levar os Portugueses a pensar que os gregos têm razão, que os governos socialistas são mais clarividentes e eficazes do que os governos conservadores para extraírem das dificuldades países nessas circunstâncias e porque esquecem alguns princípios que têm devem enformar as sociedades – como as pessoas – de bem. De algum modo, e com tal justificação, Mário Soares pronuncia o direito de as sociedades poderem ter direito a honorários históricos, na senda daqueles que justificaram a subsidiação pelos nossos impostos da Fundação na qual o seu nome pode vir a ficar eternizado. Estou quase a vê-lo a advogar que nós, Portugueses, também temos direito a que a Europa nos sustente, porque estivemos nas Descobertas de Quinhentos.

Descontemos o erro histórico do nascimento da Liberdade. Provavelmente, justificado pelas mesmas convicções que o levam a julgar que os governos socialistas são “melhores” e que só não governam na Europa porque os “libertados” são estúpidos. Com efeito, também na Grécia - tanto em Esparta como em Atenas - nem todos tinham direito à Liberdade. Havia os escravos e os metecos. E ainda fica muito para censurar. Avultando, entre todas as razões, uma que julgo indiscutível. Cada pessoa tem a estrita obrigação de produzir o que consome. E se isto é verdade para as pessoas, ainda mais o é quando subimos ao nível de uma sociedade. A solidariedade entre sociedades justifica-se face a imprevistos, a desastres, a má sorte. É totalmente injustificável quando uma sociedade se governa mal e necessita de estender a mão à caridade para matar a fome. E não há modo de fugir a este axioma: tanto a Grécia, como nós, Portugueses – como, quem sabe, a Espanha amanhã - foram mal governados. Por governos de várias cores, é verdade, mas predominantemente socialistas.

Estamos, aqui, naquilo que creio ser, hoje, a principal diferença ideológica entre a Direita e a Esquerda políticas europeias. A primeira entende que a Solidariedade não se justifica em todos os casos e a segunda acha que a Solidariedade é um valor em si mesma e que não há que analisar as razões porque ela deve (tem que) ser praticada. E é aqui que o perigo das palavras de Mário Soares surge com maior evidência. Porque elas tendem a conduzir os Portugueses há revolta contra os sacrifícios que vão ter de fazer para voltarem para níveis aceitáveis nesse fenómeno que é viver à custa dos outros. Tal não é eternamente possível, tanto dentro de uma sociedade como dentro da comunidade de sociedades. A responsabilidade pela situação em que vivem Portugal e a Grécia pertence-lhes por inteiro. Mesmo que pensemos, por vezes, ter sido o detestável Liberalismo instalado que conduziu a tal. Em última análise, não soubemos precaver-nos contra os malefícios da nova Ordem Económica, sem todavia deixarmos de lhe aproveitar os benefícios.

Creio que Mário Soares perdeu uma boa oportunidade para voltar a ser o estadista que algumas vezes reconhecemos. Acusar a Europa de culpas próprias é a atitude de quem, não querendo trabalhar, vai para a praça dizer que a culpa é de quem não lhe arranja emprego. Esquecendo-se de que, se não há empregos para todos nem por isso deixa de haver trabalho para todos. Há tanto trabalho por fazer! Muito mais razão teria Mário Soares para poder ser a voz pública da exigência para que os sacrifícios a fazer sejam bem distribuídos. Estes não podem ser cegos. Têm de ser repartidos segundo as possibilidades e as responsabilidades de cada um. Essa, sim, a Solidariedade que tem de existir nesta hora difícil da nossa sociedade. Iremos por muito mau caminho se começarmos todos a pensar que os sacrifícios devem ser impostos sem olhar a essas duas circunstâncias justificativas das dificuldades. Oxalá os novos governantes tenham a sageza para entender isso, já que os professores passados da nossa Democracia só mostraram capacidade para nos trazerem até aqui.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 30/6/2011

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