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29.6.11

MEMÓRIA

FALÊNCIA

Há dias, aí no Minho, numa reunião de algumas dezenas de pessoas, perguntaram-me se o País estava falido e para onde tinha ido o nosso dinheiro. Disponibilizei-me para responder. Mas não sem, antes, tentar deixar claros alguns conceitos. O meu escrito de hoje, trazendo para um nível mais público o que então disse, tenta contribuir para a clarificação de um ambiente não apenas carregado, mas também borrascoso, que abafa o País. Temos necessidade de ver o presente com muita clareza, a fim de que, com as nossas atitudes, não contribuamos para agravar uma situação que é muito delicada já.

Em primeiro lugar, assentemos que o termo "Estado" pode ter dois significados. Um, praticamente equivalente ao de País. Estado somos todos nós, pesssoas, instituições, que estamos numa relação económica, política e social uns com os outros e todos com terceiros. Neste caso, "Estado" é sinónimo de Portugal, com tudo quanto este termo encerra. Mas há uma outra asserção para o termo "Estado". Reduzida. Neste caso, "Estado" é o aparelho administrativo do outro "Estado". É o conjunto de departamentos, instituições, repartições, pessoas, que realiza as tarefas administrativas do País. Este é o "Estado" que, verdadeiramente e em democracia, está sob a jurisdição dos Governos, do Presidente da República, da Assembleia da República. Naturalmente, dispõe de um imenso Poder, este "Estado", susceptível de influenciar, de condicionar, a vida do outro "Estado". Mas aí, não é imperioso e omnipotente. Pode decretar o pagamento de impostos, por exemplo, mas não pode evitar que os cidadãos vão comprar as mercadorias e serviços ali na vizinha Espanha, deixando o IVA que tanta falta lhe faz - a ele, "Estado" administrativo, e a nós, "Estado" geral - para benefício dos espanhóis.

Em segundo lugar, assentemos que estar falido é não poder pagar o que se deve. Não ter bens nem fazenda para respeitar os compromissos assumidos para com terceiros. E - tal como vimos no recentemente discutido caso da redução da credibilidade do País na esfera internacional - Portugal ainda é tido como um país de baixo risco. Já foi menor o risco mas, ainda assim, não nos consideram para já como insolventes. Isto é, não estamos falidos deste ponto de vista. O que é uma boa notícia, se tivermos em conta que, internamente, estamos a agir e a reagir como se estivéssemos na maior miséria. Quando falamos de dívidas a propósito de um país, temos que distinguir três níveis. As dívidas das famílias e das empresas para consigo mesmas, numa teia de débitos ainda não pagos, e para com as instituições de crédito, que quase é a mesma coisa. As dívidas do "Estado" administrativo para com as famílias, as empresas e as instituições financeiras. E as dívidas do "Estado" país para com a comunidade internacional. E, em qualquer dos níveis, as dívidas vão sendo pagas. Cada vez mais devagar, mas vão. O que quer dizer que não estamos (ainda) falidos.

Em terceiro lugar, o "défice público". Isto é, o défice do "Estado" administrativo. "Eles", como costumamos dizer, sem nos apercebermos que muitos de "eles" somos nós ou é gente que levou o nosso voto para fazer o que faz. E, nesta questão do "défice", temos que distinguir várias coisas. Primeiro, o défice que a Europa nos autoriza a ter para que, pelo facto de usarmos a mesma moeda que ela, não roubemos o produto de outras comunidades. São os já célebres 3% do PIB. Depois, o défice da máquina administrativa do país. E que não é senão a diferença entre o que o "Estado" administrativo arrecada e aquilo que gasta. São os também célebres 6,83% ou 6,72% do PIB, dependendo do dia em que se fazem as contas. E, por fim, o défice da nossa economia face ao exterior. Isto é, a Balança de Pagamentos do País. Por estar na origem de tudo quanto se vive actualmente no país, vale a pena atardarmo-nos um pouco mais aqui, na análise dos diferentes défices.

Porque a Europa exige 3% do PIB como défice máximo, é fácil de entender. Imagine-se um portuguêrs que, a trabalhar em Portugal, cobra um euro por fabricar um rebuçado. E que pega nesse euro e vai comprar rebuçados ali à vizinha Espanha, onde o seu homónimo espanhol faz dois rebuçados enquanto ganha um euro. O português poderá, assim, trocar ali o seu euro por dois rebuçados. Mas a verdade é que obteve o seu euro produzindo apenas um. Quer isto dizer que o português "rouba" um rebuçado ao espanhol. Já veremos que, entre os factores que tornam possível o português receber um euro pelo rebuçado que produz está o défice público. Portanto, a Europa tem que exigir - todos utilizando a mesma moeda e não havendo fronteiras para as pessoas e para as relações económicas - que não haja défice público, todavia admitindo, por enquanto, que ele possa ser de 3% do produto total, para não asfixiar as economias menos desenvolvidas.

Dizer que o "Estado" apresenta um défice quer dizer que a máquina administrativa do país - que é sustentada pela parte do que todos produzimos que é apropriada pelo mesmo "Estado" - gasta mais do que consegue arrecadar. Se a situação é esta - e porque o Estado paga (ainda que seja tarde e a más horas) tudo o que gasta - só há uma maneira de equilibrar as contas. É pedir dinheiro emprestado. Assim se constituindo a "dívida pública". Quando (se) esta for muito grande, o Estado não conseguirá pagar o que deve senão para as calendas gregas. O "Estado" administrativo começa a ser encarado como mau pagador. E acontece o que sempre acontece com os maus pagadores. Perdem o crédito. E, perdendo o crédito, não poderão comprar a não ser pagando a dinheiro. Enquanto isto se passa cá dentro do País, ainda se vai aguentando. Todos passam a pagar tarde e a más horas. Mas quando isto se passa com o estrangeiro, a coisa é pior. Porque não encontramos quem nos forneça a crédito tudo, desde géneros consumíveis até matérias primas e máquinas de que tanto necessitamos para produzir (isto é, para ter as pessoas empregadas e a receber os seus salários). E a dívida pública pode chegar a limites tais que conduzam o país a suspender os seus pagamentos ao exterior, como ainda há não muito tempo sucedeu na Argentina. E isso será, então, o descalabro total da economia. Como ideia central facilitadora do raciocínio, tomemos que, se o Estado gastar permanentemente MUITO mais do que aquilo que arrecada, alguém terá que sustentar o que falta. E os estrangeiros não estão para isso, naturalmente. Seremos sempre nós a pagar.

De algum modo, o mesmo pode acontecer se a dívida acumulada for originada por um comportamento das famílias ou das empresas semelhante ao do "Estado" administrativo. Só que, quanto a estes, o próprio funcionamento do mercado conduz a que, geralmente, a situação não se possa manter por muito tempo. Ao contrário do que acontece com o "Estado" administrativo, o qual, por ser muito poderoso, pode manter-se indefinidamente assim ou, mesmo, deixar agravar cada vez mais a situação até ao colapso final.

Entenda-se ainda que há "défice público" virtuoso e "défice público" maléfico. Os gastos públicos podem ser de consumo - isto é, não reprodutivos - ou de investimento - isto é, que permitirão maior produção nos períodos vindouros. Se o défice é originado por gastos de consumo, é irrecuperável. É pura perda. Se é originado por gastos de investimento, então a produção acrescida dos períodos seguintes, propiciando maior arrecadação por parte do "Estado" administrativo, permite a recuperação do défice. Por isso se lhe chama virtuoso. Em Portugal, o défice é originado pelos gastos de consumo. Nem suprimindo todo o investimento, o nosso "Estado" conseguiria ter as contas equilibradas.

Por fim, o défice global do país perante terceiros. Medido pela Balança de Pagamentos. Um país vive do que produz, mais do que importa e menos do que exporta. Bens, serviços e dinheiro. Portugal importa mais do que exporta. O que quer dizer que produz menos do que consome. Uma situação que não pode ser aguentada eternamente. E que só o saldo entre o dinheiro exportado e o dinheiro importado permite suceder. Isto é, é colocado em Portugal mais dinheiro do que colocamos lá fora. Logo se vê a tragédia se perdermos a credibilidade. Não vem o dinheiro. E não poderemos consumir ao nível a que consumimos agora. (Explicação muito trivial mas que permite aperceber a situação). Pelo sim, pelo não, é bom que façamos um esforço para produzir mais. Ou, em breve, teremos muito menos bem-estar do que temos agora.

Entendido tudo isto, agora é fácil dar a resposta às questões que me colocaram. Portugal não está falido, não obstante o esbanjamento de dinheiros públicos verificado nos últimos trinta anos, mais gravemente nos últimos dez anos, levado a cabo pelos agentes públicos, pela sua tibieza, pelo seu mau sentido de gestão a largo prazo. Mas a máquina administrativa de Portugal, pela enormidade dos seus défices públicos e pela falta de virtuosismo destes, caminha a passos largos para a falência. Mas, se a máquina administrativa do Estado falir, arrastará a falência da economia portuguesa. E com esta, a própria falência de Portugal. O que mais me admira é que, não sendo eu nenhum especialista profundo na matéria, tenha dito, nestas colunas, escassos seis meses depois de António Guterres ter iniciado a sua governação, que tinha sido uma tragédia para o país a sua eleição; e que só agora tenhamos todos dado conta do estado a que fomos conduzidos pelo "diálogo", pela cedência dos poderes instituídos face às forças sociais, pelo acomodar de gregos e troianos num barco que, via-se já então, não tardaria a meter água. Os sacrifícios agora pedidos são uma tarefa de calafetagem. Vamos a ver se ainda vai a tempo. Ou se teremos naufrágio.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 4/7/2005

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