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13.12.06

RETALHOS LITERARIOS

Felizmente, a inspiração, por modesto que seja o uso que vou fazer dela, surgiu-me, anonimamente, subrepticiamente, por entre as páginas, quebradas já, duma revista desactualizada, perdida entre outras, espalhadas sobre a mesa duma sala de espera qualquer. A folhear distraidamente, pensamentos perdidos num problema profissional, quase passara por ela sem notar. Espírito geralmente atraído pela minúcia, foi uma pequena legenda que me prendeu. Dizia: "Em África, primeiro come o pai, depois a mãe e finalmente os filhos, se algo sobrar. Os elementos produtivos da família são o valor a conservar". Por cima, uma fotografia. A cores, que a tragédia só é negra na linguagem dos poetas ou no traje das viúvas.

Devo dizer-vos que sou, por passatempo, canhestro e curioso estudante de algumas situações dramáticas que a Humanidade tem vivido. O que faz, entre outras coisas, que já tenham perpassado, retratadas, ante os olhos do meu corpo ou do meu espírito, cenas impressionantes da miséria humana. Mas poucas terão provocado em mim tão grande inquietação, como esta viria a inspirar, a ponto de ter ficado esquecido de tudo o mais, ideias em sobressalto, por largos minutos. Talvez porque, diferentemente de todas as outras, esta tinha mais que ver com o futuro do que com o passado, era muito mais uma janela aberta do que uma porta fechada. Eu descrevo.

Um miúdo, cuja cor de pele eu já não lembro, com evidentes sinais de mal-nutrição, dois rios de lágrimas a jorrarem, caudalosos, das nascentes marejadas e a rasgarem sulcos dolorosos, sentia-se, cara abaixo, até se perderem nas margens do queixo. Do narizito brilhante, dois pingos de muco límpido tinham escorrido até se perderem nos lábios entreabertos que deixavam escapar um soluço, ouvia-se. Mas foram sobretudo os olhos que me impressionaram. Cravados na lonjura, negros, brilhantes das lágrimas que os lavavam, eram o retrato, a forma, o corpo material duma interrogativa angústia. Densa. Tão sensível como indizível. Dolorosa e acerada como o gume duma lâmina acabada de afiar.

Os olhos daquela criança, não mais de quatro a cinco anos vegetados, exprimiam audivelmente, com a raiva impotente do espectador-vítima, uma interrogação violenta, importante, crucial, um interrogação dirigida aos homens-grandes perdidos na teia dos seus problemas menores, uma interrogação incrédula e temerosa:


- " Que fazeis do meu mundo?... Que fazeis do meu mundo? "...

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Excerto da conferência "QUE FAZEIS DO MEU MUNDO" - Magalhães Pinto

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