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29.12.06

RETALHOS LITERARIOS

Há duas coisas que eu gostava de dizer-lhes, antes de falar no que me traz aqui. A primeira é que não adianta as senhoras convidarem-me para lhes falar de temas técnicos.

A técnica, seja no que for, só serve para destruir a emoção do imprevisto, para transformar cada um de nós, e eventualmente, num cidadão bem comportado dum qualquer admirável mundo novo, para estereotipar o gesto, para igualizar o ser, para destruir a criatividade. A técnica é a norma ao serviço da produtividade, nunca da criatividade. Um pintor técnicamente apetrechado, pode colocar numa tela uma pintura formalmente perfeita e, todavia, não ter feito arte. É isso. A técnica nunca será arte. Embora a arte possa requerer técnica.

Quero eu com isto dizer que devem desconfiar de quem seja um fanático da técnica. Felizmente, o ser humano é muito mais valioso e versátil do que a peça dum qualquer maquinismo. É sempre capaz, ele, ser humano, dum toque de génio, duma pincelada nova, duma nota nova na escala da Vida. É sempre capaz de ir para além daquilo que já foi inventado antes dele.

E não pensem que isto não tem que ver com o tema que me propuseram. Porventura, será até a única coisa, relacionada com o tema proposto, de que me ouvirão falar. Afinal, o processo de decisão é, ainda ele, um processo de fabricação da qual algum produto há-de resultar.

Porque sou avesso à primazia da técnica, não adianta convidarem-me para lhes falar de temas dessa natureza. Sempre encontrarei modo de lhes escapulir, sem cometer a indelicadeza de recusar um convite que sempre me honra.

A segunda nota prévia, que entendo dever deixar, está relacionada com a primeira. Havendo que fugir à estopada duma enfadonha charla de xxx e yyy, cumpria encontrar um tema que fosse agradável. Viradas e reviradas as alternativas, acabei por me centrar numa. Eu ia falar para senhoras na sua generalidade, todas jovens seguramente. Um tema apropriado, tanto por ser agradável, como por ser polémico, era o casamento. Diria mesmo, por ser agradavelmente polémico. Ou polémicamente agradável. Às vezes, agradável primeiro e polémico depois. Ponderados os prós e os contras, decidi-me. Ia gastar o tempo benevolamente cedido pela vossa atenção, falando do casamento, cumprindo assim o fim da minha vinda aqui.

É curioso como, se eu quisesse falar do processo de decisão, tinha já todos os ingredientes necessários. Um fim a conseguir, vários modos alternativos para o atingir, ponderação das vantagens relativas de cada um desses modos, produção da decisão e implementação da decisão. Só faltaria, neste ponto, o controlo da execução e a verificação do grau com que o fim fora atingido. Mas isso só poderia ser feito daqui a pouco. Mas eu não quero enveredar por esse caminho. Eu queria, quero falar de algo menos estéril. Quase sempre. O casamento. E é disso que vou falar-lhes.

Casar é uma decisão difícil. Porventura das mais difíceis que temos de produzir durante a nossa vida. Um parêntesis aqui. Para dizer que a vida duma pessoa não é senão um encadeado permanente de decisões consecutivas. Um bébé recém-nascido, quando procura o biberão, está a produzir uma decisão. Entre a alternativa de chuchar secamente no dedo, geralmente o polegar, ou alimentar-se na protuberância de borracha. Como em qualquer outra decisão, ele tem um fim em vista - alimentar-se - e escolhe entre alternativas à sua disposição. Acontece que ele não sabe que uma das alternativas não conduz ao fim desejado. E não sabe porque a informação que utiliza, inconscientemente, trazida dos alvores da humanidade, embora perfeita, não pode contar com a interpretação esclarecida da sua inteligência. Por isso erra, por vezes, escolhendo o dedo como se de biberão se tratasse.

(A CONTINUAR)

Excerto da conferência O PROCESSO DE DECISÃO - Magalhães Pinto - Vila Real - Novembro de 1993

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