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22.6.08

OS HERÓIS E O MEDO - 300º. fascículo

(continuação)

Minha ilha encantada, de um só fauno, achada e perdida no horizonte da minha ausência em cada noite. Hoje, quero falar-te de outras coisas. Quero falar-te das nossas esperanças, escondidas como conchas no fundo do mar! Quero pegar em cada uma delas e construir um castelo de madrepérola, no qual as sereias e os marinheiros sem rumo se venham amar! Quero dizer-te baixinho, como o ciciar duma onda de estio, daquelas de fazerem carícias nas areias duma ilha paradisíaca feita mulher, que cada esperança deixada a vogar nas águas, ora revoltas, ora calmas, da nossa vida é como uma alga bailarina à superfície das ondas. Sempre encontrará uma praia onde aportar. Cada desejo que deixamos afogado na vontade dos outros, é um golfinho brincalhão na hora de dormir. Voltará sempre mais alegre, quando a noite acabar. Cada grão de felicidade que deixamos isolado no recôndito dos penedos existentes na nossa vida tenderá a juntar-se a todos os outros, formando o leito onde, um dia, repousará um mar imenso. Essa a sinfonia da vida! O constante renovar das esperanças desfeitas como castelos na areia! Sabes, minha ilha, nenhum de nós esconde sempre a criança que em nós nunca se perdeu. Acabamos sempre por ser capazes de reconstruir, vezes sem conta, aquilo que a nossa inabilidade destrói a cada instante. É possível renascer. E, quando se renasce, minha querida, a Vida fica pintada de todas as cores do arco-iris! O céu da nossa alegria lembra um nascer do sol para os lados do mar. Não sei se já viste o sol nascer no mar. É lindo! Para nós, habituados que estamos a vê-lo acordar nas montanhas e adormecer nas ondas, é como se o tempo se invertesse, é como se ontem fosse amanhã. Um ontem e um amanhã de novo unidos, como se não existisse o hoje. Porque hoje não faz sentido, meu beijo. Hoje é uma distância e não um tempo. Hoje é o absurdo dos actos cruéis, desumanos. Hoje é este sentir estar onde se não quer. Hoje é sempre um dia que só tem noite. E o dia que vem a seguir a hoje nunca é amanhã. Continua a ser hoje. Por isso esta sensação de um amanhã distante. O que torna mais difícil, mas também mais imperiosa, a esperança de lá chegar, ao amanhã. Se é que vale a pena lá chegar, minha querida. Antevejo o dia em que escarnecerão o nosso sacrifício, teu, meu, de todas como tu, de todos como eu. Nunca ninguém saberá, se não passar por aqui, de quantos sacrifícios foram feitos todos estes hojes. E, todavia, rirão. Nunca ninguém saberá, se não passar por aqui, um dia que seja, de quanto heroísmo, de quantas abdicações, foram feitos todos estes dias sempre iguais. E, todavia, rirão. Esquecerão a nossa sede. A nossa fome. O nosso calcorrear perdido entre horizontes longínquos, enterrados na lama do tarrafo até aos joelhos. As sanguessugas nas pernas, a chuparem o sangue que outros também querem. Esquecerão os nossos medos e as nossas raivas. Medos de quanta metralha esvoaça em redor e raivas pelo irmão onde um estilhaço poisou. Onde uma bala interrompeu o seu voo. E também esquecerão as dores morais. Esquecerão que, enquanto para eles todos os dias foram amanhãs, para nós sempre foram hojes. E rirão. Um riso de escárnio que nos encherá de uma vergonha imerecida. Nem sequer o lenitivo do dever cumprido nos livrará dessa vergonha. Porque isto não pode ser dever. Dizem que sim. Mas não pode ser. Não pode ser dever aquilo que nos destrói mais se vivemos do que se morremos. Não, dever não é. Mas é coragem. É necessário possuir coragem a rodos para enfrentar isto, em lugar de fugir. Toda a minha esperança é que um dia, porventura num amanhã ainda mais longínquo, alguém há-de descobrir de quanta coragem foram feitos todos estes anos. Essa a esperança que me fica. Uma esperança que deve ser tua também. Uma esperança que sei existir em ti. Por isso, por saber da tua enorme capacidade para ser sempre menina, por sentir que és capaz de pegar em todas as esperanças adormecidas e, com elas, fazer um ramalhete de realidades atado por fios de sensibilidade, é que te aprecio e estimo e amo. Por maiores que sejam as procelas, nunca percas, minha ilha, a espuma do teu sentir. Deixa que o Vento a acaricie. E nunca desesperes, meu beijo. Eu vou voltar.

(continua)

Magalhães Pinto

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