OS MALEFÍCIOS DA CORRUPÇÃO
Apesar de sabermos que o fenómeno existe, talvez nenhum de nós tivesse tido, anteriormente, uma visão tão clara das consequências desse cancro que nos mina, a corrupção. Foi necessário ouvir a voz de uma autoridade internacional afirmá-lo, para termos a devida proporção das coisas. Segundo essa voz, o nível de vida dos Portugueses seria aproximadamente o dos finlandeses, não fora a corrupção existente em Portugal. A Finlândia é o mais pobre dos países nórdicos e, mesmo assim, são riquíssimos quando comparados com o meu país à deriva. Mas é bom não perdermos de vista que vivemos em democracia. Governa sempre quem leva maioritariamente o nosso voto. Seja governo central, regional ou local. É por isso que, em última análise, a responsabilidade é sempre nossa.
Começa a ganhar corpo a ideia de que o Poder é procurado por bandos com a mira colocada na obtenção de benefícios pessoais. Dificilmente se escapa a tal sensação, à medida que as notícias surgem dando conta, senão de bandalheiras, de negócios pouco claros. O último trazido à luz do dia falava de um acordo feito pelo Governo de António Guterres com uma empresa privada, que teve por consequência o pagamento, por parte do Estado, de doze milhões de euros (dois milhões e quatrocentos mil contos dos antigos). Em princípio, não devíamos estranhar a operação. Governei empresas privadas de razoável dimensão - embora não comparáveis com um país - e não raro fiz acordos que custaram dinheiro a essas empresa. Até o povo sabe que mais vale um bom acordo do que uma má demanda. Os acordos extra-judiciais não são necessariamente maus. E, não o sendo para os privados, também o não são, necessariamente, para o Estado. Podem até ser um acto de boa gestão da coisa pública. Mas, se assim é, porque é que uma tal operação conduz à necessidade - e utilidade - da denúncia pública, em grandes parangonas? É que, no maior segredo, um ex-governante pertencente ao Partido apoiante do Governo passou, ao deixar o Governo, a representar a empresa reclamante e, depois, recebedora dos doze milhões.
Pode-se fantasiar àcerca disso. Pode-se ver a dita empresa, ao saber que o ex-governante estava livre, abordando-o e convidando-o para representar os seus, dela empresa, interesses. Feito o convite, quase podemos ver o ex-governante a fazer uma cara de zangado e a dizer: "Por quem me tomam? Então saí agora mesmo do Governo e pedem-me para os representar contra ele?". Se o ex-governante não fez isso, podia fazer. Era uma atitude que ficava bem. E, por outro lado, não adiantava nada, era uma atitude inócua. Ao abordá-lo, a empresa conhecia o espírito de sacrifício e o patriotismo do "ex". Sabia que ele acabaria por ceder, em nome da Pátria. E ele cedeu. Pode-se mesmo meter aqui uma ponta de sal, imaginando que o tal "ex" abordou o Primeiro-Ministro de então e contou-lhe da abordagem, mostrando-se, mais uma vez, escandalizado. Mas o Primeiro de então era outro patriota. E demais, sabedor do estado em que as Finanças Públicas já estavam, por causa do malfadado Cavaco que o obrigara a inventar o Rendimento Mínimo para ganhar as eleições. E, nisto de défice público, migalhas é pão. Que o digam os militares, os polícias, o Armando Vara e o Santana Lopes. Vai daí, aproveita a oportunidade e faz um apelo ao "ex" para que aceite o convite da empresa. Sempre era melhor fazer um acordo com alguém conhecido e amigo do outro lado, capaz de levar a empresa a reduzir a uns míseros doze milhões as suas pretensões. A contrariedade do "ex" terminou aí. Feneceu. Morreu. Marou. Fazer um jeito à empresa reclamante era uma coisa indigna. Fazê-la para o Primeiro era outra. No primeiro caso era conflito de interesses, era desonestidade. Era corrupção. No segundo caso, era interesse. Alto aí, meu Caro Leitor. Interesse NACIONAL. Não interesse dele nem da empresa. Eu não sei o que se passou. Mas juraria que ele fez o jeito ao Primeiro, representando o segundo, para que o segundo não fizesse mal ao país, não recebendo um tostão pelo seu trabalho. Sim, que isto de dar uma palavrinha ao camarada que está no Governo e pode decidir a coisa dá muito trabalho, tem que meter uns uísques pelo menos da marca Martin's. E só por isso, porque admito que se tratou de uma prestação inteiramente gratuita, é que não fico indignado nem chamo ao caso corrupção.
Agora reparo que comecei a falar sério e resvalei para a farsa. Tenha paciência, meu Caro Leitor. Mais de metade dos Portugueses são uns farsantes. Só escapa Você, a sua família, aquele seu amigo do peito e o Vitorino. Se não sabe quem é o Vitorino, não me pergunte. Eu também não sei. Só sei que apanhava canas ali para os lados de Lamego. Bom. Mas isto não é uma aula de geografia. Estávamos a falar de corrupção. Ah! Esqueci-me de dizer que a D. Fátima, o senhor Morais e o senhor Avelino também não são farsantes. Como não são farsantes todos os amigos dessa ilustre casta de gente séria. Bolas! Estou a alargar tanto o rol dos não-farsantes, que corro o risco de ficar eu sózinho no meio do palco.
Sigamos então com os malefícios da corrupção. Para já, temos que só não somos finlandeses porque somos corruptos. Bem, não todos. E esse é outro dos malefícios grandes da corrupção. A existência de incorruptíveis. Admite-se lá que, num país onde o rendimento nacional é metade do que devia ser devido à corrupção, ainda haja incorruptíveis? Veja só, meu Caro Leitor. Se fôssemos todos corruptos, o PIB - aquela grandeza que o Engº. Guterres desconhecia em absoluto e, por isso, não sabia que podia ser afectada pelos acordos com empresas representadas por amigos - o PIB, dizia, seria provavelmente nulo, O que era uma grande vantagem. Com o PIB nulo, adeus impostos. Ìamo-nos rir à brava com os políticos em campanha. Eles diziam: "Prometo reduzir os impostos!", E a gente ria-se. Abaixo de zero, só na Sibéria, que é um local bom para incorruptos. Perguntará o meu Caro Leitor: "Mas, então, com o PIB nulo, de que é que nós vivíamos?". Oh meu Caro Leitor! Não seja assim ingénuo! Vivíamos com os subsídios da Europa! Os quais, além de serem campo propício à proliferação dos corruptos, já são, por assim dizer, o sustento de metade de Portugal. Só não sei - porque ainda não foi feita uma sondagem sobre isso - é se a metade que é sustentada pelos fundos europeus é a metade corrupta ou a metade incorrupta. Se calhar, é a meias.
Posto isto, que me deu mais ou menos para o tamanho ideal da crónica de hoje, só me resta desejar uma coisa, meu Caro Leitor. É que, como sabe, estamos nas vésperas de uma eleição autárquica. Segundo o Presidente da Associação Nacional de Municípios, não há corrupção nas autarquias. Eu acredito piamente. Mas, pelo sim pelo não, que tal o meu Caro Leitor optar, desta vez, por revolucionar a maneira como vota? É que isto do nosso bem-estar é muito mais sério do que uma partida de futebol entre o Benfica e o Porto. E Você, só Você, pode dar uma valente vassourada nos corruptos ou nos incorruptos, conforme for de seu agrado. É que o mal não é haver corruptos. O mal é não sermos ou todos corruptos ou todos incorruptos.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 25/9/2005
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