O SUOR E AS LÁGRIMAS
Foi numa estação dos correios da cidade. À hora em que costumamos estar a trabalhar. Eu queria enviar uma carta registada com aviso de recepção. E entrei. Uma multidão. Da chuva, que caía fininha mas persistente? Não acredito. Pelos guichés todos ocupados, era mesmo serviço. Afinal, é capaz de ser boa ideia privatizar os CTT. É que, em Portugal, o correio electrónico ainda só serve para namorar. Dirigi-me à máquina das senhas que indicaria a minha vez. É quase preciso um fazer formação profissional para escolher o botão correcto. Carreguei no que me pareceu apropriado e a senha caiu. Olhei o quadro de chamada e vi que tinha doze pessoas à minha frente. Abençoado país! Tanta gente a comunicar. Se calhar, é por isso que o Primeiro-Ministro afirma quase todos os dias que, em matéria de comunicação, estamos à frente de quase todo o mundo. E o tempo foi passando. Não sei se o meu Leitor já esteve numa fila deste tamanho, nos correios. O tempo estica-se e ao fim de um quarto de hora parece que já ali estamos desde o baptizado. À falta de melhor, dediquei-me a analisar o comportamento das pessoas que estavam à minha frente. Nenhuma delas parecia impaciente ou apressada. O único que marcava um estranho compasso com o tacão dos sapatos era eu. Sorri, por momentos, ao ver aquele sujeito, com ar de galã e traje a condizer, a tirar um macaco do nariz. A fila andava lentamente. E foi essa lentidão aparentemente exagerada que me despertou a curiosidade. Seriam as pessoas a querer coisas complicadas ou seria a funcionária dos correios que tinha almoçado mais pesadamente? Não, ela parecia diligente. O problema era, seguramente, o da complicação clientelar. Mas lá chegou a minha vez.
Ao dizer ao que ia, a menina dos correios não evitou um sorriso e uma exclamação:
- Até que enfim vem aqui alguém para deixar algum dinheiro! Esta tarde só tenho feito pagamentos! Estava a ver que não vendia nada hoje!..
Não resisti a perguntar. Então, nos correios pagava-se muito? Ainda havia muita gente a movimentar o dinheiro por vale dos correios, numa era em que se vai ao banco sem sair de casa?
Talvez cometendo uma pequena falta de rigor profissional, a menina olhou-me com ar sorridente e correspondeu à minha curiosidade.
- Ó senhor! São os subsídios do Estado! É o rendimento mínimo, é o subsídio de reinserção, é o desemprego!.. Olhe, a gente aqui parece a sopa dos pobres! É uma bicha que nunca mais acaba!..
Já que a conversa estava a dar, eu tentei saber mais. Era assim tanto dinheiro e tanta gente? Ela mostrou-me alguns dos recibos já pagos. O maior tinha um valor à volta dos mil e duzentos euros. Na média, rondariam os quinhentos ou seiscentos euros. Fiquei perplexo a olhar para aquilo. Entendia, agora o PEC, a subida de impostos, o adiamentos das obras públicas, as portagens nas SCUTS, etc.. Estas, as portagens nas SCUTS só do norte, com grande sentido de justiça: se o desemprego e a miséria são maiores no norte, então que paguem a crise as SCUTS do norte.
Enquanto corriam as diligências da minha carta registada com aviso de recepção, não pude evitar alguns pensamentos íntimos. Como é que Portugal podia não estar na bancarrota? Durante quase uma hora, tinham estado naquela fila doze pessoas que não trabalhavam e viviam do suor dos outros e uma que estava a trabalhar, para alimentar os outros. Não que não me sinta obrigado a concorrer para que os mais desgraçados tenham a carga um pouco aliviada. Mas porque a proporção era esmagadora. Em desfavor dos que trabalhavam.
Não há país que se aguente nestas condições. É insustentável. Bem podem colocar a fronteira do reequilíbrio orçamental lá para o século que vem. 2013 é só uma atitude de “vamos saindo e quem vier atrás que feche a porta”. Nenhuma das soluções anunciadas é verdadeiramente solução. Como qualquer médico amador, estamos a tratar dos sintomas e não estamos a atacar a doença. Onde, uma ideia regeneradora que realmente se atire, como forcado a impressionar as garotas, por entre os cornos do touro? Não há país que resista. E, se é assim, também não vamos resistir. Não pude deixar de juntar estes acontecimentos do qual era personagem e espectador aos da Assembleia da República que aqui denunciei faz pouco tempo. O Estado está a viver uma orgia na qual os fornicados serão os cidadãos.
A ironia disto tudo é que há muito trabalho para fazer. Portugal está longe de ser um país acabado. Entenda-me, caro Leitor. Estamos quase acabados, enquanto Pátria e comunidade limpa, embora modesta, digna, embora pobre, respeitada, embora com alguns defeitos. E, por isso, longe de sermos um produto acabado, final, construído, completo, arrumado. Há muito trabalho para fazer. O que não há são empregos certos, daqueles em que o dinheiro vem ao fim do mês, sem cuidar do que uma pessoa fez ou não fez. E o que me parece, e o que parece que se estava a passar ali à minha frente, naquela tarde chuvosa, era que há gente que não quer trabalho, só quer emprego. E, como o não tem, prefere ter o dinheiro de borla, que é muito melhor. Só que o dinheiro de borla a que deita a mão é feito de suor e lágrimas de muita gente.
Esta é uma das coisas que detesto no socialismo. Os que não tem um emprego são uns coitadinhos. Os que se afadigam, a correr de seca para Meca o dia inteiro, deixa filho aqui, trabalha duro ali, faz um gancho acolá, vai buscar o filho, chega a casa de engole, mal engolido, um pedaço de pão, faz serão noutro gancho, deita-se tarde e levanta-se cedo, para reiniciar o ciclo, esses são uns patifes que têm que pagar o que falta a outros, alguns sem alternativa, o que é justo, outros por preguiça, o que é tremendamente injusto. O programa de estabilidade que aí vem, numa tentativa de endireitar as coisas, já prevê alguma coisa neste domínio, criando mais incentivos a que as pessoas procurem trabalho. Mas creio que ainda é muito pouco. É necessário, absolutamente necessário, que aos subsídios do Estado corresponda, pelo menos, um serviço cívico à medida. Enquanto não matarmos a preguiça, Portugal será um paraíso para uns, poucos, e um vale de lágrimas para outros, muitos.
Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 25/3/2010
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